Alcance das decisões do STF sobre redução da base do ICMS

José Roberto Pisani


A interpretação e aplicação de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito da redução da base de cálculo do ICMS e dos créditos do imposto têm causado alguma insegurança. Há um acórdão proferido no leading case (RE nº 174.478-2, de São Paulo), também chamado “caso Monsanto”, em que se discutiu se vendendo seus produtos (defensivos agrícolas) com redução de base de cálculo a empresa teria, ou não, o direito de lançar e aproveitar integralmente os créditos do imposto correspondente às aquisições de matérias primas. Desse caso foi relator para o acórdão o ministro Cezar Peluso, e aí assentou-se uma alteração substancial na jurisprudência da Corte, que passou a entender, desde então, que redução de base de cálculo equivale a isenção parcial, e que o crédito estaria pois limitado pelo artigo 155, parágrafo 2º , inciso II, letra B, da Constituição Federal – “a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação (…), acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores”.


Esse acórdão foi complementado pelo proferido em embargos de declaração (RE nº 174.478-2-ED/SP). No acórdão, o próprio ministro Cezar Peluso, relator, reporta-se à ação direta de inconstitucionalidade (Adin) nº 2.320 para afirmar que o estorno do crédito, nas hipóteses de isenção, não incidência, e redução de base de cálculo, opera-se automaticamente, salvo se houver legislação autorizando o crédito, hipótese em que este é admitido.


A Adin 2320, de Santa Catarina, relatada pelo ministro Eros Grau, trouxe esse ponto fundamental ao entendimento da questão: a cláusula constitucional, “salvo determinação em contrário da legislação”. Decidiu-se rejeitar a Adin proposta por Santa Catarina, na qual o Estado visava a declaração de inconstitucionalidade de lei estadual permissiva do crédito, em determinadas situações, também ligadas à agropecuária. Afirmou a Corte que lei pode estabelecer sobre a manutenção integral do crédito e que, portanto, a lei do Estado de Santa Catarina era válida, não implicando sequer a chamada guerra fiscal.


No entanto, apesar da clareza dessas decisões e de sua conformidade à Constituição, o que se tem verificado é a sua aplicação apenas parcial. Nega-se o crédito porque a Constituição o proíbe na isenção, total ou parcial. Não se aplica o dispositivo constitucional em sua inteireza. Não se levam em conta disposições legais ou de convênio que permitem a manutenção do crédito. Não se analisa cada caso concreto. Mas a jurisprudência do STF – que deveria servir de norte, de balizamento, de luz condutora – não é adequadamente utilizada, o que conduz à patente inconstitucionalidade, que a tanto equivale não ler ou não ver no dispositivo constitucional a cláusula “salvo determinação em contrário da legislação”.


Muito a propósito, a recente edição nº 2381 do Migalhas reproduz, em seu intróito, advertência de Miguel Reale, que não é só jurídica, mas também lição de vida, no sentido de constituir erro banal de hermenêutica o de destacar um preceito de lei, ou uma cláusula do contrato para, com esse “elemento abusivamente isolado”, fundamentar o ponto de vista. É assim com o contrato, é assim com a lei, é assim com a Constituição Federal. E tem que ser assim com a jurisprudência do STF, que é um guia preciso e exemplar para a interpretação e aplicação da Constituição.


Uma das hipóteses em que a jurisprudência do STF tem sido inadequadamente aplicada refere-se aos produtos da cesta básica de alimentos. O Convênio ICMS nº 128, de 20 de outubro de 1994, estabeleceu, para tais produtos, a alíquota de 7%, dispondo ainda sobre a manutenção integral do crédito. Além de o convênio permitir o crédito, há a circunstância de que ele estabelece para tais produtos não uma redução de base de cálculo, mas uma alíquota expressa e específica de 7%, de acordo com o princípio constitucional da seletividade do ICMS (CF, artigo 155, parágrafo 2º, inciso III ). Ora, alíquota específica e seletiva, ainda que inferior à estabelecida pelo Senado Federal, não se confunde com redução de base de cálculo. Alíquota específica é tributação à alíquota fixada, e não hipótese de isenção, não incidência, redução de base de cálculo, e nem mesmo benefício fiscal.


Felizmente, algumas decisões individuais de ministros e de turmas do STF têm reconhecido a substancial diferença entre os produtos da cesta básica de alimentos e o caso Monsanto. A esse respeito, vale mencionar o agravo regimental no recurso extraordinário nº 239.632-1 (ministro Eros Grau) e a decisão proferida pelo ministro Cezar Peluso, na ação cautelar nº 1.753-0/RN. Essas decisões trazem alento e uma garantia de que os casos de produtos da cesta básica de alimentos não devem ser tratados na chamada vala comum.


José Roberto Pisani é advogado, sócio e coordenador nacional da área tributária do Pinheiro Neto Advogados
 

Fonte: Valor Econômico

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