Decisões vinculantes dos tribunais superiores

Hugo Otávio T. Vilela

O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), tribunais superiores, vêm firmando o entendimento de que as demais Cortes e juízes singulares são obrigados a julgar no mesmo sentido que eles. Esse entendimento tenta dar resposta a um justo clamor da comunidade jurídica (magistrados inclusive), no sentido de que haja maior uniformidade e previsibilidade nas decisões. No entanto, a fundamentação utilizada para embasar esse vasto alcance das decisões dos tribunais superiores, esse efeito vinculante, parece padecer de fragilidades jurídicas e políticas que merecem exame.

Primeiramente, é importante ter claro o que estabelece a Constituição de 1988. O texto, após várias emendas, continua a afirmar que apenas algumas decisões do STF, e nenhuma do STJ, terão efeito vinculante. Olhando mais atentamente o que diz o texto sobre o STF, especificamente quanto ao recurso que mais gera processos naquele tribunal, chamado recurso extraordinário, lê-se que as decisões tomadas pelo Supremo nesses recursos só terão efeito vinculante se esse for o desejo do Senado, manifestado por resolução.

Ocorre que o STF vem entendendo que suas decisões em recurso extraordinário têm efeito vinculante em, praticamente, todos os casos, independente de manifestação do Senado. A justificativa para não levar em conta a regra de que cabe ao Senado dar ou não efeito vinculante a essas decisões é de que teria havido uma “mutação constitucional”, que ocorre quando uma sociedade muda tanto, desde que o texto constitucional foi editado, que alguns de seus artigos devem agora ser lidos num sentido diferente daquele que fora pensado por quem o escreveu. Esse instituto é utilizado no exterior como última saída para adaptar à realidade atual constituições antigas, que foram pouco ou só superficialmente emendadas.

Nosso contexto é outro. A Constituição brasileira é de 1988, mais jovem que o brasileiro médio (IBGE – Censo 2010). Também é altamente mutável, tendo sido emendada 72 vezes desde sua edição, mais de três alterações por ano. Além disso, e sobretudo, deve-se perceber que a “mutação” é utilizada para dar a um texto antigo um significado novo, não pensado por seus autores, mas que seja razoavelmente possível de ser extraído do artigo como ele foi escrito. A mutação, portanto, é um método de se entender um artigo de forma diferente, mas não de revogá-lo, que é basicamente o que se quer fazer com a regra que exige resolução do Senado para dar efeito vinculante a decisões do STF em recurso extraordinário.

Um estudioso estrangeiro, confrontado com nosso cenário constitucional, diria educadamente que a chance de ter havido de fato alguma “mutação” na constituição brasileira é muito remota. Se insistíssemos na pergunta, e também falássemos de nosso intuito de utilizar a “mutação” para revogar uma regra do texto, ele tentaria mudar de assunto. Depois, se disséssemos que a regra que queremos revogar diz respeito à separação dos poderes, ele se lembraria de algum compromisso para aquele momento.

Realmente, a coisa se torna mais intrincada quando analisada pelo prisma da separação dos poderes. O STF tem externado que suas decisões em recurso extraordinário, mesmo sem manifestação do Senado, vincularão não só os demais tribunais e juízes, como também o Executivo e o Legislativo. Isso cria nos demais poderes a impressão de que o Judiciário pode estar se outorgando mais poder. Essa impressão se reforça quando se examina o caso do STJ. Embora suas decisões não cheguem a vincular os demais poderes, o fato é que o imenso alcance prático que as decisões do STJ vêm ganhando no mundo jurídico parece não ter sido previsto pela Assembleia Constituinte nem para o STF. Fica a aparência, então, de o Judiciário estar aumentando sua força sem a participação dos demais poderes, o que parece ir contra o princípio de freios e contrapesos que rege a relação entre eles.

O grau de liberdade que tem sido utilizado para construir o entendimento de efeito vinculante de todas as decisões dos tribunais superiores parece ser o mesmo grau de liberdade que a comunidade jurídica, em polêmicas recentes envolvendo decisões judiciais, chamou de ativismo. Isso leva a crer na possibilidade de que essa mesma comunidade, quando no futuro se sentir desagradada por decisões dos tribunais superiores e clamar pela autonomia dos demais juízes e tribunais, apontará as graves fragilidades do entendimento aqui retratado, que agora está optando por não ver. Se isso vier a ocorrer, o Legislativo e o Executivo poderão aproveitar a oportunidade para retomar o terreno perdido. Assim, apesar de servir a uma finalidade nobre, é bem provável que o entendimento de expansão dos efeitos vinculantes das Cortes superiores poderá ser rapidamente desacreditado por quem hoje o apoia, o que deixará o Judiciário encurralado pela comunidade jurídica, pelo Executivo e pelo Legislativo.

De qualquer modo, o fato é que, no jogo dos três poderes, o Judiciário segue na ofensiva.

Hugo Otávio T. Vilela é juiz federal da 1ª Região, membro da Turma Recursal Suplementar dos Juizados Especiais Federais (GO), integrante do Fórum Nacional de Saúde – CNJ, mestre em direito

Fonte: Valor Econômico

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