Dez anos depois, Enron ainda é ferida aberta

Por Andrew Hill | Financial Times

Sob a superfície dos atuais protestos anticapitalistas – de Wall Street à City londrina -, há uma ferida que, mesmo dez anos depois, ainda não cicatrizou. Em 16 de outubro de 2001, ao anunciar seus resultados financeiros, pela primeira vez a Enron alertou o mundo sobre a toxicidade de seus esquemas de lançamentos contábeis fora do balanço. O comunicado desencadeou uma espiral fatal. Em 2 de dezembro, a Enron estava falida. Um ano depois, a Arthur Andersen, a auditoria externa, havia se desintegrado.

O caso Enron foi transformado em livros, filmes, peça de teatro e em sinônimo de descontrole empresarial, descumprimento fiduciário e fraudes. Mas as verdadeiras lições não foram ouvidas.

Em vez disso, muitos leram os sermões – sobre a importância da ética, da governança e da transparência, do perigo de complexidades, da visão de curto prazo e unilateral sobre os incentivos – da mesma forma que tinham lido “Liar’s Poker”, de Michael Lewis, sobre o escândalo no Salomon Brothers em meados dos anos 1980: não como uma advertência, mas, nas palavras do autor, “como um manual de usuário”.

Há muitas coisas que o mundo deveria ter aprendido com a Enron. Uma delas é que a cultura ruim começa no topo.

Como líderes da companhia, Ken Lay e Jeff Skilling assumiram o crédito pelo crescimento da Enron, mas foi deles a responsabilidade por permitir que um emaranhado de conflitos de interesse e escândalos a derrubassem. As empresas que faliram durante a crise financeira atual – AIG, Bear Stearns, Lehman Brothers, entre outras – foram ao colapso em grande parte devido ao senso de arrogância de seus líderes quanto a sua própria invulnerabilidade.

Outra lição que deveria ter sido aprendida é que os desfechos infelizes muitas vezes resultam de muitos pequenos passos, e não de saltos individuais imprudentes.

A absurda decisão do conselho de administração da Enron de renunciar a seu código de conduta e permitir que seu diretor financeiro atuasse como sócio de um “veículo” não incluído em suas demonstrações financeiras foi o ápice de uma série de decisões menores. Os conselheiros foram levados, passo a passo, ao desastre.

Um outro ponto que o mundo deveria ter aprendido é que conflitos de interesse e incentivos monetários concedidos irrefletidamente induzem comportamentos inadequados.

Sherron Watkins, o funcionário delator na Enron, disse-me na semana passada: “Estou falando sobre isso há dez anos e cheguei à triste conclusão de que, quando um monte de dinheiro está sendo despejado em cima de sua cabeça, isso realmente tolda seu discernimento”.

As consequências da “panelinha” formada pelos conselheiros da Enron (lubrificada por pagamentos por consultoria ou doações a instituições de caridade favoritas de alguns dos conselheiros) foram agravadas por conflitos na Andersen, que faturou mais por serviços de consultoria prestados à Enron do que por auditar sua contabilidade.

Apesar disso, os conselhos das empresas americanas continuam sendo bastiões de resistência aos freios e contrapesos da democracia dos acionistas. As agências reguladoras europeias só recentemente retomaram a luta contra as firmas de auditoria e consultoria no que diz respeito ao conflito de interesses entre os dois tipos de atividades.

Embora tenha diminuído o número de empresas que incluem opções de compra de ações diretamente em seus pacotes de remuneração, estruturas de remuneração inadequadas corromperam as decisões dos bancos no período imediatamente anterior à crise e fomentaram uma visão de curto prazo que ainda tolda grande parcela das tomadas de decisões empresariais.

Outra lição dos problemas da Enron é a que a complexidade obscurece as fragilidades. Os complicados derivativos e veículos externos aos balanços que minaram os bancos na crise financeira foram os herdeiros das sociedades de propósito específico exoticamente denominadas – Chewco, Jedi, os “Raptors” – que contribuíram para emaranhar os negócios legítimos da Enron.

Tendo construído essas estruturas, seus arquitetos, se é que ainda as compreendiam, naturalmente preferiram nebulosidade à transparência.

O mundo deveria ter aprendido ainda que a falta de confiança destrói a boa vontade. Fraude e formação de quadrilha foram as acusações que renderam tempo de cadeia para Lay, que morreu pouco depois da sentença, e para Skilling, que continua apelando. Mas o fim de jogo começou com o colapso da confiança nas operações de trading no cerne da Enron. Nas atuais palavras de um ex-funcionário da companhia: “Os fatos continuavam mostrando-se piores do que as revelações”. Isso soa estranhamente semelhante à crise de confiança que afligiu e, em alguns casos, continua afligindo os bancos.

Há algum consolo. A Lei Dodd-Frank aprovada na esteira da crise bancária foi mais sensata do que a reação instintiva embutida na lei Sarbanes-Oxley, aprovada após o caso Enron. Os conselhos de administração estão, de modo geral, mais receosos diante de manifestações de pensamento único.

Mas, como os sábios da Renascença que tinham um crânio em suas mesas para lembrá-los de sua mortalidade, executivos, conselheiros, auditores e reguladores deveriam manter à mão a mensagem aos acionistas de Lay e Skilling em 2000 (“A Enron [é] a empresa certa, com o modelo certo, na hora certa”).

Seis ou sete anos após a mais rápida queda em desgraça entre todas as empresas na lista Fortune 500, praticamente esquecemos os erros fatais que a causaram. Em vez disso, fomentamos um escândalo ainda maior, mais ganancioso e mais sistêmico. Essa cegueira deliberada faz com que me preocupe com quais catástrofes estamos cultivando para os anos à frente.

Fonte: Valor Econômico

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