Mais empresas optam por recuperação extrajudicial

Depois do “combo” de crise corporativa que marcou o início do ano passado, com Americanas e Light buscando proteção judicial, credores vêm tomando a dianteira das negociações na tentativa de buscar uma solução para as empresas com necessidade de reestruturação financeira.

Ao mesmo tempo, é uma forma de os credores, especialmente os bancos, liderarem os processos para tentar limitar as suas perdas financeiras, que são maiores quando os casos se transformam em recuperações judiciais, que sempre levam a elevados descontos nas dívidas.

Além disso, a mudança recente da lei de falências no Brasil criou um arcabouço de regras que permite, como consequência, um crescimento do número de empresas que optam pela recuperação extrajudicial, explicam especialistas.

Com o suporte de casos recentes como o da varejista Casas Bahia, o valor da dívida negociada nos pedidos de recuperação extrajudicial no Brasil avançou 19% no ano, até julho, para um montante de R$ 8,9 bilhões, em comparação com todo o ano passado. Foram 23 operações no período, segundo o Observatório Brasileiro de Recuperação Extrajudicial (Obre), entidade criada em 2022 com o objetivo de reunir dados desse mercado. O número ainda não conta o pedido feito pela Tok&Stok , que também anunciou fusão com a Mobly, demonstrando a tendência desse modelo de reestruturação.

O destaque é que os grandes casos já representam cerca de 85% desses pedidos, com valores representativos, o que exige das partes maior capacidade de negociação para alinhar um acordo, muitas vezes complexo, entre devedor e credores.

Altamente alavancada, a cimenteira InterCement, segundo fontes, também é uma candidata a entrar com pedido de recuperação extrajudicial, e o caso deve ajudar, em breve, a engrossar essa lista. Procurada, a empresa preferiu não comentar. A petroquímica Unigel é outro exemplo de peso entre as recuperações extrajudiciais no país, com processo iniciado em 2023, quando o grupo deu o primeiro passo rumo à reestruturação. O caso segue em curso neste ano.

Segundo especialistas consultados pelo Valor, bancos e gestoras de fundos de crédito tentam ser mais proativos nas negociações, algo que amadureceu após o duro aprendizado depois das crises em Americanas e Light.

Conforme fontes, no momento atual, grupos de credores preferem se sentar com as empresas assim que começam a prever no horizonte um problema financeiro mais grave, para buscar rapidamente um acordo fora das varas judiciais, o que tende a elevar mais o número de recuperações extrajudiciais no país.

Advogados reforçam que têm sido negociações duras, especialmente depois dos recordes de recuperações no país após 2020, reduzindo a tolerância dos credores a novas perdas. Ainda pesa o fato de que, muitas vezes, os credores lideram o processo para reduzir seu risco dentro de uma recuperação judicial.

“É o que a gente chama de ‘RE’ com a caneta do credor. Ele toma a frente e chega a impor certas condições, que acabam passando porque o devedor não quer chegar numa ‘RJ’ ”, diz um administrador judicial com 30 anos de atuação na área. “Houve um caso em que um banco exigiu que uma varejista passasse a criar um FDIC, fundo de direitos creditórios para o braço de crediário, e a condição foi aceita”.

O aumento na busca desse modelo, que se baseia na negociação direta entre devedores e credores, vem na esteira da mudança da lei de falências. Uma das alterações, por exemplo, foi a introdução da ação da tutela cautelar antecedente, que na prática protege as companhias de pedidos de execução por 60 dias, abrindo a possibilidade de se sentarem com credores em busca de uma negociação.

Por esse instrumento, a empresa pode negociar apenas com seus principais credores, com mais de 50% do valor da dívida. No passado, era preciso ter mais de 60%, a chamada “maioria qualificada”. Agora, com o acordo em mãos, o restante dos credores é dragado para o acordo que foi firmado.

Já na recuperação judicial, a companhia toma a decisão, no geral, de forma isolada, num momento em que já está pressionada por pedidos de execução e, muitas vezes, de falência. Sua evolução costuma ser mais lenta, visto que é comum em grandes processos uma queda de braço com credores, a fim de diminuir o corte da dívida – o “haircut”.

De todo modo, com a taxa de juros básica (Selic) de dois dígitos pressionando as empresas, os números de recuperações não param de crescer no ano, atingindo no primeiro semestre o maior volume em 20 anos. Foram 1.014 pedidos no intervalo, alta de 71% em relação ao mesmo período do ano anterior, segundo a Serasa Experian.

O varejo tem se destacado: apenas no último trimestre, nomes de peso como Sidewalk (marca de vestuário), Novo Mundo (varejista de eletrônicos) e Coteminas (dona de Mmartan e Artex) pediram proteção judicial contra cobranças.

Em todos os casos, houve uma negociação prévia com credores, que poderia levar, eventualmente, para uma recuperação extrajudicial, apurou o Valor com duas fontes. Mas não houve acordo.

A Coteminas esbarrou em divergências com o fundo Odernes FIP, da gestora Farallon, e a Sidewalk até começou a alinhar um plano extrajudicial neste ano, mas perfis diferentes de credores impediram um entendimento, diz uma fonte.

Apesar do grande número de transações de “RJs” no país, a tendência é que as “REs”, ganhem fôlego maior. Outra mudança recente na lei – que pode ter impacto nesses números – é a possibilidade de uma modalidade provisória.

Nela, a companhia pode fazer a entrada do pedido após aprovar um acordo com 33% dos créditos. Assim, ganha 90 dias para alcançar o quórum necessário, de mais de 50%. Essa alternativa tende a beneficiar casos em que a empresa possui, além de bancos credores, uma base relevante de detentores de dívida externa (“bondholders”) e debêntures.

O advogado da área Ronaldo Vasconcelos, professor de direito processual Civil e comercial da Universidade Mackenzie, cita três tipos de recuperação judicial: aquela que ocorre completamente fora das varas judiciais, e o mercado muitas vezes nem toma conhecimento; aquela em que há homologação da Justiça, com apoio de ampla maioria ou 100% dos credores; e a chamada “impositiva”.

Esta terceira, em que o apoio dos credores pode ficar perto de 50% mais um, é a mais tensa por “empurrar” os outros credores para dentro do processo. A recuperação extrajudicial da Ricardo Eletro, de 2019, começou dessa forma.

“Na prática, se você olhar os casos, a ‘RE’ que tem funcionado é aquela em que os credores estão concentrados numa única classe, como foi com a da Casas Bahia. Porque se é muito pulverizada, é mais difícil um acordo. E chega ao ponto em que a empresa tem que correr para a RJ, pelo risco de alguém pedir falência”, diz Vasconcelos.

A advogada Juliana Biolchi, coordenadora do Obre, aponta que a iniciativa de criar a entidade se deu ao identificar um vácuo informativo nesse mercado. Biolchi afirma que, apesar de os números serem pequenos, principalmente quando se compara com os dados de recuperação judicial, a representatividade entre as grandes companhias, ou seja, se analisado o valor das dívidas, deixa mais evidente o crescimento. “Hoje existe um despertar de todos os players de que, com o pedido de recuperação extrajudicial, o desgaste é menor. O caso das Casas Bahia foi muito importante, uma dívida de R$ 4 bilhão que se resolveu com apoio dos credores e todo mundo começa a perceber o valor”, afirma.

Não foi algo rápido ou indolor, como ocorre em boa parte dos casos envolvendo recuperações extrajudiciais. A Casas Bahia vinha desde 2023 em renegociações com os bancos Bradesco e Banco do Brasil, principalmente, e já havia um entendimento prévio do que era preciso fazer, o que facilita no desenho de um plano. Os demais credores, com esse acerto, foram incluídos nos mesmos termos.

“Conseguimos um reperfilamento com 100% de adesão, porque percebeu-se que o plano [de retomada] que montamos era viável”, disse a analistas Renato Franklin, presidente da Casas Bahia. Também pesou nessa negociação o fato de a rede ter se comprometido a entregar resultados no curto prazo, inclusive com credores fazendo certas exigências para apoiar o projeto, diz uma fonte a par do tema.

Dentre outras empresas que entraram com pedido de recuperação extrajudicial recentemente, aparecem ainda a Superbac, uma investida do private equity da XP e a Unimed-Rio. Procuradas, as empresas não comentaram.

Por ser um modelo mais sofisticado e envolver equipes especializadas em mediação, a recuperação extrajudicial deverá seguir mais concentrada entre grandes casos, opina Biolchi.

No entanto, segundo a especialista, com o amadurecimento desse instrumento no mundo corporativo, essa concentração tende a diminuir. “Mas como se trata de um instrumento mais sofisticado, não terá a mesma envergadura para pequenos negócios, já que há falta de acesso aos grandes escritórios”, comenta.

O sócio do escritório Lefosse, responsável pela área de reestruturação, Roberto Zarour, diz que o ritmo de crescimento dos pedidos se deve à maior disposição de um grupo de credores de ter uma postura mais proativa frente à situação financeira das empresas.

“Se tem o entendimento de que é melhor se estar na mesa de negociação. Tanto a companhia quanto credores preferem uma solução negociada e que não gera um litígio eterno. Os credores estão dispostos a buscar um acordo, desde que consigam termos razoáveis.”

Segundo Zarour, com o pedido de recuperação extrajudicial, as dívidas com fornecedores podem ficar fora do acordo, ajudando a preservar a relação comercial, algo relevante especialmente para alguns setores, como varejo e agronegócio. “Assim, uma empresa que tem boa relação com seus fornecedores consegue manter”, diz.

O sócio do escritório Pinheiro Neto da área de reestruturação, Giuliano Colombo, afirma que, no mundo, se trata de uma tendência nos processos de reestruturação e que “no Brasil não deveria ser diferente”. “Com a ‘RE’, o processo é abreviado e se evita custos e outros efeitos de segunda ordem de uma recuperação judicial”, afirma.

O especialista afirma que o processo é abreviado especialmente porque ele já nasce “costurado, negociado e documentado”. E, com isso, se consegue vincular os credores divergentes ou ausentes ao acordo.

No processo de recuperação judicial, na contramão, o pontapé inicial das negociações se dá após a entrada do pedido.

“Até hoje as extrajudiciais foram pouco usadas no Brasil por dois fatores predominantes. O primeiro por uma questão cultural e menos familiaridade com o instituto. O segundo porque as companhias que iam para uma RJ já estavam sendo atacadas e precisavam de uma proteção imediata”, diz o especialista.

Fonte: Valor Econômico.

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