Uma revolução microeconômica sem precedentes acontece na forma como as empresas brasileiras se relacionam com seus credores, fornecedores, clientes, governo e mesmo com seus donos, os acionistas. De conseqüências ainda desconhecidas, as novas regras contábeis que entraram em vigor no início do ano têm o potencial belicoso de elevar a arrecadação tributária, diminuir os dividendos dos acionistas e até reduzir tarifas de serviços, como água, luz e pedágios.
Antes da mudança, as empresas brasileiras costumavam registrar bens, dívidas e despesas segundo os valores desembolsados, exatamente como aparecem para as pessoas comuns nos extratos bancários. A prática é considerada apropriada, mas, no caso de empresas, esconde o valor pelo qual esses bens ou dívidas encontrariam eventuais compradores caso tivessem de ser vendidos.
Por exemplo, todos sabem que um carro de R$ 40 mil comprado numa concessionária valerá bem menos um minuto após deixar a loja. No caso, a nova lei mandaria registrá-lo não como um bem de R$ 40 mil, mas talvez pelos R$ 38 mil que conseguisse vendê-lo.
“Patrocinada” pelo sistema financeiro, a nova lei contábil demorou sete anos para ser aprovada no Congresso Nacional, mas trouxe ganhos inéditos de transparência nas contas de empresas que se relacionam com os bancos e que até bem pouco tempo não tinham a obrigação de ter suas contas submetidas ao crivo de auditores independentes, como Casas Bahia, Schincariol, Camil Alimentos, entre outras.
Os bancos argumentam que, com mais transparência, podem avaliar melhor seu risco e cobrar juros menores. Dizem ainda que permitem a comparação de empresas brasileiras com seus pares internacionais, facilitam a entrada de investimentos estrangeiros e que podem até mesmo ajudar o país a obter o esperado “grau de investimento”, selo de bom pagador de sua dívida.
“Quanto mais democrático é o país, mais contadores e auditores tem. O Brasil é um dos que menos tem. A União Soviética não tinha auditores nem contadores, não precisava. A lei vai levar as empresas a passarem as contas a limpo e a formalizar. Vai aumentar a lucratividade. Vai também aumentar a arrecadação porque o lucro aparece. O camarada vai aderir a isso não porque é obrigado, mas porque é bom para ele”, disse Antoninho Marmo Trevisan, da Trevisan.
O Brasil tem 24.600 habitantes para cada auditor, enquanto os EUA têm apenas 2.300.
E as mudanças são relevantes. No caso do Banco Itaú, por exemplo, o lucro em 2006 segundo as normas brasileiras ficava em R$ 4,3 bilhões, mas saltava para R$ 6,4 bilhões seguindo o padrão internacional. Neste caso, o aumento no lucro elevaria a arrecadação da Receita Federal e aumentaria o dividendo ao acionista.
Vale lembrar que as empresas do Novo Mercado da Bovespa e as que têm ações negociadas no exterior já adotam padrões altos de contabilidade.
Nem sempre a conta se repete. Em 2003, a operadora de telefonia britânica Vodafone teve um prejuízo de 17,4 bilhões, mas nos padrões internacionais essas perdas se transformaram em um lucro de 11,6 bilhões. Isso porque as regras britânicas permitiam à companhia descontar do lucro a maior parte do ágio que pagou pelas licenças de telefonia.
“A experiência na Europa mostra que o processo de transição pode ser complexo, exigir recursos e demorar. Ele mexe com todas as áreas da empresa”, disse Fábio Cajazeira, da PriceWaterHouseCoopers.
Exatamente sobre a amortização de ágio que acontece uma das maiores polêmicas hoje entre os auditores e contadores, e que sinaliza para uma aumento da arrecadação. Até então, o ágio pago em caso de aquisições de empresas entrava no balanço como uma despesa, pois é entendido como um prêmio pago pela oportunidade de fechar um negócio.
Com a nova lei, nenhuma mudança ocorre nas regras da amortização do ágio. A mudança se dá quando a empresa adquirida é registrada, que passa a ser pelo valor de mercado e não mais o contábil. Como o valor de mercado costuma ser maior do que o contábil, o ágio diminuirá e a empresa terá de recolher mais imposto.
Para a consultora tributária Ana Campos, da Hirashima & Associados, mesmo que a lei expresse que as mudanças não terão impacto tributário, na prática, o registro de ativos altera o recolhimento. “Vai ter impacto tributário. Não há como impedir”, disse.
No caso das concessionárias, as revisões tarifárias avaliam parte do ativo imobilizado -como estado de estradas, linhas de transmissão, canos de água e esgoto. Para Luiz Nelson Porto Araújo, da Trevisan, se esses ativos não recebem investimento -ou forem depreciados pela ação do tempo-, os custos da concessionária diminuem, devendo ser repassados ao consumidor como tarifa menor. A Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) afirmou que estuda o impacto das novas regras nas tarifas do setor.
Fonte: Folha de São Paulo