Novos códigos e surpresas indesejadas

A moda da recodificação pegou. Tramitam no Poder Legislativo projetos de lei para instituir um novo Código de Processo Civil e um novo Código de Processo Penal. Um anteprojeto de Código Comercial está sendo gestado por um grupo de professores. Comissão de juristas capitaneada pelo ministro Herman Benjamin estuda modificações no Código de Defesa do Consumidor. Em suma, o apreço do brasileiro pela novidade legislativa parece ser inversamente proporcional à baixa confiança da sociedade no parlamento – mais um curioso paradoxo no país da jabuticaba.

Mas há resistências. As reações à tramitação apressada do projeto de lei que cria o novo Código de Processo Civil, por exemplo, se fizeram tão contundentes que parece ter havido um freio à ânsia de aprovação que orientou a iniciativa. O Ministério da Justiça reconheceu que a proposta é polêmica – o que nem mesmo os integrantes da comissão de juristas encarregada de minutar o anteprojeto negam. Entidades como a OAB-SP, a OAB-DF, a Confederação Nacional da Indústria, além de renomados juristas, já se manifestaram publicamente contra a proposição. No centro da crítica, duas questões fundamentais: quanto ao mérito da proposta (o excesso de poderes ao juiz) e quanto a sua pertinência (as causas da morosidade da justiça seriam estruturais e não de natureza legislativa).

Sobre a proposta de alteração do Código de Defesa do Consumidor, o primeiro aspecto que chama a atenção é a surpresa. A comissão de juristas encarregada da tarefa havia anunciado que as reformas seriam pontuais e concentradas, sobretudo, em temas como o superendividamento e o comércio eletrônico. O fundamento para a escolha desses temas foi a propalada desatualização do código em relação a essas realidades inexistentes no início da década de 90, quando foi promulgado o diploma.

Mas o anteprojeto das modificações que circula no meio jurídico mostrou-se bem mais amplo e ambicioso, como temiam os defensores da preservação integral do código. A proposta prevê a interrupção da prescrição da ação individual pela proposição da ação coletiva correlata; autoriza a modificação do pedido e da causa de pedir até o momento da sentença; permite a inversão do ônus da prova na sentença; sugere, de forma obscura, que a ação que verse sobre direito do consumidor será imprescritível, entre outras inovações.

A radicalidade dessas propostas é segundo aspecto que chama a atenção. A ninguém parece ser razoável vulnerar a proteção do consumidor. Afinal, todos somos consumidores, ainda que em diferentes escalas. Mas fazer dessa defesa um fetiche, a ponto de ameaçar outros bens jurídicos igualmente importantes, equivale a preferir uma árvore à floresta.

O direito é fundamentalmente um sistema de normas que pretende conferir previsibilidade à vida social. As disposições de lei que dão ensejo à surpresa e ao sobressalto chocam-se com esse propósito; são aversivas ao sistema. Propor, por exemplo, que a ação individual seja imprescritível, ou que o seu prazo prescricional seja interrompido pela propositura da ação coletiva correlata, importa prestigiar a incerteza, eternizando ou prolongando um período de expectativa do início do litígio. A proposta contraria toda a tendência legislativa contemporânea de encurtar os prazos prescricionais com vistas a prestigiar a segurança jurídica.

Tão ou mais preocupantes do que essa são as propostas de inovação de natureza propriamente processual. Por exemplo, a permissão da mudança do pedido e da causa de pedir até o momento da sentença. A ideia é tão ruim que nem mesmo a benevolente comissão especial constituída no Senado para a revisão do projeto de lei que cria o CPC – que continha disposição idêntica – a aceitou. Claro, porque isso significaria tornar perene o litígio: a cada defesa consistente do réu, bastaria ao autor mudar o eixo da ação até, enfim, prevalecer. A verdade é que o conceito que fundamenta o dispositivo é inconstitucional: é preciso ajudar o autor a vencer a ação judicial.

Crítica análoga pode ser dirigida ao dispositivo que autoriza a inversão do ônus da prova na sentença. No CDC vigente, não existe regra que defina o momento da inversão do ônus da prova. Isso deu ensejo a acalorados debates na doutrina e na jurisprudência, com ilustres juristas defendendo que sim, o ônus da prova poderia ser invertido na sentença – em geral, prejudicando o réu. A jurisprudência, embora nem sempre unânime, tende a impedir esse capcioso expediente, estabelecendo aquilo que aos ciosos com o devido processo legal parece óbvio: como pode o juiz definir na sentença que uma parte deveria ter produzido uma prova cujo ônus, a rigor, não lhe cabia?

A inversão do ônus da prova – justamente por ser mudança do curso natural e esperado das coisas – é uma exceção. Exige, portanto, interpretação restritiva. Se operada, quando observados os requisitos previstos em lei, a inversão deve logicamente anteceder a produção da prova. Nunca na sentença, quando a prova já foi – ou deveria ter sido – produzida. Afinal, o processo judicial não é, e tampouco dever ser, um arsenal de armadilhas. Que pelo menos essa garantia fundamental seja preservada da ânsia de mudança legislativa.

Por Fernando Dantas M. Neustein – Sócio de Mattos Muriel Kestener Advogados

Fonte: Valor Econômico

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