O ‘amicus curiae’ na disputa tributária

Por Bruno Toledo Checchia e Saul Tourinho Leal

Ao debater a chamada “Marcha da Maconha”, o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou sua posição quanto às limitações processuais impostas ao amicus curiae no controle concentrado de constitucionalidade (julgamento de ação direta de inconstitucionalidade, por exemplo). O recado da Corte foi: o amicus curiae informa o que quiser, mas isso não o torna integrante do polo processual. Ele não é parte, não pode recorrer, contestar, aditar inicial ou exigir que seus argumentos sejam levados em consideração.

A sistemática da repercussão geral estimula uma participação mais intensa dos amici curiae, uma vez que a sua essência é: o debate é relevante e impacta além dos limites da lide. Assim, o STF define a questão apreciando um, ou alguns recursos extraordinários (REs), numa discussão retratada em milhares de processos espalhados pelo país. Presume-se que o RE escolhido seja o melhor, mas não se tem qualquer garantia disso. Logo, o amicus curiae surge como instrumento de controle da excelência informacional do RE, ou do bloco de REs, escolhido como leading case, uma vez que, havendo deficiências de elementos, pode, ele amicus curiae, supri-las, por meio do seu esforço argumentativo adicional.

Dentro dessa perspectiva, o STF deixa de julgar processos e passa a deliberar sobre teses constitucionais. Ninguém é mais “o dono do caso”. O que se tem é que os jurisdicionados afetados passam a ser “os donos do debate”, valendo-se, para isso, de todo o esforço argumentativo que puderem realizar.

O Plenário do STF assume a posição de uma das mais importantes esferas públicas de deliberação e decisão. Qual a razão, portanto, para a Corte não levar em consideração os elementos trazidos pelo único canal de acesso informacional entre ela e os demais afetados por aquele julgamento? Por qual motivo esse amicus curiae não poderia alertá-la quanto à deficiência do recurso ou quanto à necessidade de se levar em consideração um argumento não trazido nos autos?

Os efeitos da decisão proferida no RE com repercussão geral chegam a ser maiores do que na ADI, pois nesta não há, como regra, o sobrestamento de todos os processos com temas correlatos até o julgamento do leading case. Há, ainda, o viés da economia processual e, também, de boa gestão judiciária.

O julgamento do processo com repercussão geral cria um direcionamento que deve ser seguido pelos tribunais regionais e estaduais, de forma a uniformizar as decisões acerca de um determinado tema, solucionando, de maneira definitiva, os conflitos na esfera judicial. Se, contudo, a Corte analisa a discussão de forma incompleta – não apreciando um ou outro argumento – os demais tribunais se verão forçados a analisar a questão sob o prisma do argumento não debatido no julgamento do leading case, implicando em uma rediscussão com, inclusive, a possibilidade do retorno dos autos ao STF para análise do argumento anteriormente desconsiderado. Não há racionalidade. A Corte se verá na complicada situação de (i) rejeitar a análise de recurso sob o argumento de que a matéria já teve um pronunciamento final; ou (ii) promover novo julgamento do tema, reanalisando a matéria anteriormente decidida em sede de repercussão geral em razão do novo argumento surgido.

Em qualquer uma das hipóteses, o tribunal se verá forçado a promover nova análise da existência, ou não, de repercussão geral. Ou seja, ou o tribunal deveria reconhecer a repercussão geral de todos os processos que, eventualmente, retornassem ao tribunal para novo julgamento de fundamento não anteriormente apreciado (já que não se poderia refutar a existência de repercussão geral da matéria, já reconhecida); ou, em caso de recusa de análise do novo fundamento, o STF estaria desviando o foco da repercussão geral do tema em debate para se analisar a repercussão geral do argumento da parte.

Os interessados não podem ficar alheios à discussão do recurso que decidirá matéria de seu interesse, nem vir a ser prejudicados na eventualidade de um patrocínio deficiente por parte dos patronos do recurso com repercussão geral, que por motivos variados, podem não se ver na necessidade de embargar acórdão que, eventualmente, não tenha analisado um dos temas do recurso.

A ausência de um debate completo pode não prejudicar a parte componente do leading case, não obstante, poderá ter enorme relevância para as pessoas atingidas pela decisão. Compreendendo que o amicus curiae representa os demais jurisdicionados afetados com aquele julgamento, negar sua capacidade postulatória ou recursal equivale a cercear o direito de defesa desses jurisdicionados nos casos de repercussão geral, impedindo-os de fornecer ao STF elementos outros, diversos daqueles trazidos nos autos do leading case, subtraindo alternativas que lhe serão fechadas quando do trânsito em julgado.

Eis um exemplo: a discussão relativa à constitucionalidade do chamado “PIS/Cofins – Importação”, criado pela Lei nº 10.865, de 2004. Em julgamento em 26.9.2007, o STF reconheceu a repercussão geral da matéria relativa à constitucionalidade da expressão “acrescido do valor do ICMS incidente no desembaraço aduaneiro e do valor das próprias contribuições”, contida na norma.

Tal dispositivo majorava o valor do tributo, tendo diversos contribuintes se insurgido contra essa determinação legal. O tribunal reconheceu a repercussão geral da matéria, passando à análise do tema. Esta, todavia, ficou limitada à questão da base de cálculo. Apesar disso, grande parte dos contribuintes discutiam a inexigibilidade do tributo em si, sustentando que a contribuição somente poderia se dar por meio de lei complementar.

Essa questão acabou não sendo objeto de análise daquele recurso. Somente em maio de 2008, a Corte reconheceu, também, a repercussão geral da tese atinente à necessidade de lei complementar para regular a matéria. Curioso observar que, neste último caso, o RE interposto pela União discutia a questão da constitucionalidade da base de cálculo – discutida do RE anterior.

Em casos como esse, a ampliação do objeto da discussão- inclusive por meio de iniciativa ou recurso do amicus curiae – traria benefícios à solução da lide, permitindo ao tribunal uma análise ampla do tema em debate, de forma a proferir uma prestação jurisdicional final e completa.

Bruno Toledo Checchia e Saul Tourinho Leal são advogados do Pinheiro Neto Advogados

Fonte: Valor Econômico

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