Perfis que Serasa passa ao mercado são pura fantasia

O poder da presidente Dilma Rousseff, maior autoridade do país, não é o mesmo quando ela vai às compras. Lojistas e bancos têm a recomendação de oferecer a ela crédito de, no máximo, R$ 2,1 mil. O limite de crédito de Dilma é o menor entre os chefes dos três poderes. Para Renan Calheiros, presidente do Senado, o limite recomendado de crédito é de R$ 12,7 mil. Para Henrique Eduardo Alves, presidente da Câmara, é de R$ 15,7 mil. E, para o ministro Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal, é de R$ 25,9 mil.

Os limites são sugeridos a lojistas e bancários pela empresa Serasa Experian como parte de seus serviços de restrição a crédito. E a partir de dados muitas vezes fornecidos pelo próprio poder público. O problema do fornecimento de dados veio novamente à tona na última semana, quando o acordo entre o Tribunal Superior Eleitoral e a Serasa foi anulado pela presidente da corte. Espera-se que a questão seja discutida pelo Pleno do tribunal nesta terça-feira (13/8).

O documento previa que a corte fornecesse à companhia informações como nome, data de nascimento e nome da mãe dos mais de 140 milhões de eleitores. Outros tribunais, como o Tribunal de Justiça de São Paulo e a Receita Federal já firmaram acordos semelhantes, enchendo o arquivo da empresa de informações.

A função da Serasa — que afirma ter “o mais extenso banco de dados da América Latina sobre consumidores, empresas e grupos econômicos” — é orientar o comerciante e o sistema financeiro sobre o poder de compra de cada consumidor. O serviço pretende informar o risco de vender, financiar ou emprestar a pessoas inadimplentes. É um serviço que evita concessão de crédito a consumidores de perfil inadimplente.

Embora se baseie em informações públicas, o sistema traz distorções óbvias. A renda presumida do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (foto), que tem participação societária em duas empresas (FHC Consultoria Lectures e Goytacazes Participações) é de R$ 1,2 mil — menos de dois salários mínimos, mesmo tendo ele sido professor, ministro, senador e presidente da República.

O risco de emprestar dinheiro para o milionário Eike Batista é cerca de duas vezes maior do que para Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos Cachoeira. Enquanto a probabilidade de inadimplência no crédito a Eike é de 93%, a chance de levar um calote de Cachoeira é de 37% — tudo segundo a Serasa Experian. Já o “Risco Dilma” é bem menor: apenas 9% de chance de um calote nos próximos 12 meses, enquanto empréstimos ao seu rival político, José Serra, apresentam apenas 1% de chance de não serem quitados.

Privacidade e delação
O fim do convênio entre o TSE e a Serasa trouxe novamente à mídia a questão, contestada na Justiça com frequência, dos convênios da empresa com o poder público. Em 1998, a ConJur noticiou acordo entre a Serasa e o TJ de São Paulo firmado em 1995. A Corregedoria-Geral de Justiça autorizou o envio de informações solicitadas pela Serasa sobre cidadãos alvos de execuções, ações de cobrança e busca e apreensão.

À época, tanto a Serasa quanto o TJ-SP defenderam a legalidade do convênio. Mas o ministro do Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, questionou o acordo, invocando o princípio da moralidade administrativa. “Se a empresa obtém uma mercadoria e lucra em cima dessa mercadoria em detrimento da privacidade dessa pessoa, isso deve ser coibido”, disse.

E os lucros não são baixos. A Serasa responde, diariamente, a 6 milhões de consultas feitas por 500 mil clientes diretos e indiretos, apenas no Brasil, “o maior bureau de crédito do mundo fora dos Estados Unidos”, segundo a própria empresa. Uma assinatura básica para pessoa jurídica custa cerca de R$ 150, convertidos em serviços. Os preços variam de R$ 0,06 a R$ 20 mil por consulta. Um serviço que permite visualizar a renda presumida, o limite de crédito sugerido e a probabilidade de inadimplência custa em torno de R$ 10 por consulta.

Na nova polêmica, envolvendo Serasa e TSE, o ministro Marco Aurélio se manifestou novamente: “Tempos muitos estranhos nós estamos vivendo no Brasil. O TSE é depositário de dados, dados cobertos pelo sigilo. E esse sigilo só pode ser afastado mediante ordem judicial para efeito de investigação criminal ou de instrução de inquérito”, observou.

Os dados aos quais se tem acesso em uma consulta à Serasa são um prato cheio para os mais inclinados a bisbilhotices. Com uma simples assinatura do serviço é possível saber, por exemplo, que os nomes de Dilma (foto) e do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva foram consultados no mesmo dia — nesta sexta-feira (9/8) — pela operadora de telefonia celular Tim.

Do mesmo modo que é possível se questionar se os dois petistas compravam um plano de telefone para conversarem de graça, cabe perguntar quem o também ex-presidente Fernando Henrique Cardoso pensou em presentear quando foi à joalheria Tiffany & Co. no último dia 5 de junho, onde teve seu nome consultado na Serasa pela última vez.

Cidadãos comuns
A necessidade de FHC por crédito deve ser menor do que a de quem frequenta lugares menos chiques do que a Tiffany, como as Casas Bahia. Distorções como as apresentadas nesta reportagem não atingem apenas os poderosos da República, mas também aqueles que necessitam colocar em carnês toda e qualquer compra para a casa.

Na sanha de evitar calotes a qualquer custo, a Serasa usa, como um dos quesitos para calcular a restrição de crédito o fato de o consumidor ter ações na Justiça – sem a necessidade do trânsito em julgado. Ser apenado, mesmo que de maneira indireta, por recorrer à Justiça, muitas vezes para reclamar direitos, vai contra a jurisprudência do Supremo. Na Ação Penal 470, o processo do mensalão, por exemplo, os ministros discutiram a possibilidade de processos em trâmite servirem como “maus antecedentes”, mas o entendimento ficou vencido. A regra é clara: só podem ser consideradas antecedentes criminais decisões judiciais transitadas em julgado. Nunca processos em andamento.

Faz de conta
Se refletissem a realidade, as consultas aos bancos de dados da Serasa diriam que o banqueiro Daniel Dantas vale três vezes mais para o mercado do que seu algoz, o delegado afastado e, atualmente, deputado federal, Protógenes Queiroz (PCdoB-SP). A sugestão de limite de crédito a ser oferecido ao primeiro é de R$ 2.730. Ao segundo, R$ 751.

A empresa também aponta que a economia dos estados se reflete na remuneração de seus governadores. Governar o estado de São Paulo vale muito mais do que o Rio de Janeiro, já que a renda media presumida de Geraldo Alckmin é de R$ 11.110, enquanto a de Sérgio Cabral é de R$ 4.615.

O empreendedorismo também não deve ser bem visto no mercado. Um lojista e um bancário parecem ter mais a temer ao ceder crédito ao empresário Abílio Diniz, do Grupo Pão de Açúcar, do que ao deputado federal Tiririca (PR-SP) (foto). Enquanto a chance de levar um calote do empresário é de 16%, a probabilidade de inadimplência do deputado é de apenas 4%. O limite de crédito sugerido para Tiririca é de R$ 2.198, que é R$ 156 a mais do que o sugerido a Abílio Diniz.

Se a “confiança do mercado” espelhasse a confiança da população, as próximas eleições presidenciais poderiam ser definidas com apenas algumas consultas. Eduardo Campos tem crédito de R$ 938; Marina Silva, de R$ 1.547; Aécio Neves, de R$ 1.660; José Serra, de R$ 2.098; Dilma Rousseff, de R$ 2.101; e Lula, de R$ 10.894. Nenhum tem o mesmo prestígio que o ocupante do mais alto cargo do Judiciário, o ministro Joaquim Barbosa, para quem o crédito sugerido é de R$ 25.896. Além de destoarem da realidade, os dados que a empresa oferece aos seus clientes conflitam entre si.

Fonte: Conjur

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