PGFN não pode discutir em juízo decisões do Carf

Estão em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) as ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) nº 6.399, nº 6.403 e nº 6.415, em que se discute a constitucionalidade formal e material do novo artigo 19-E da Lei nº 10.522/2002, incluído pelo artigo 28 da Lei nº 13.988/2020 (Lei do Contribuinte Legal), que trouxe o fim do voto de qualidade no processo administrativo federal.

Antes do advento dessa lei, vigia o parágrafo 9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235/1972, segundo o qual, em caso de empate nas votações do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), os presidentes de suas turmas, que são representantes da Fazenda Nacional, teriam voto de qualidade. Isso, na prática, significava uma decisão em favor do Estado e contra o contribuinte. Com a alteração trazida pelo artigo 28 da Lei nº 13.988/2020, o empate agora passa a ser favorável a este último. Não é difícil perceber a importância desse tema tanto para a sociedade quanto para a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).

O fim do voto de qualidade trouxe, porém, uma nova discussão. Em caso de derrota no Carf, pode a PGFN acionar o Judiciário para rediscutir a validade do lançamento tributário, conforme admitido, obiter dictum, pelo ministro Barroso, no voto que proferiu no início do julgamento das referidas ADIs?

Por mais sedutor que tal argumento possa ser – sobretudo para aqueles que defendem, até por dever de ofício, o Fisco -, não nos parece adequado, do ponto de vista constitucional, que, como contraponto ao fim do voto de qualidade, se possa admitir a possibilidade de rediscussão no Judiciário, pela PGFN, de matérias decididas, em caráter definitivo, pelo Carf.

Em primeiro lugar, porque vige entre nós o postulado da unicidade da vontade estatal. O Estado não pode emitir diretrizes conflitantes sobre o mesmo assunto. Em outras palavras, não pode tirar com uma mão aquilo que deu com a outra; não pode dizer “sim” e “não” ao mesmo tempo. Trata-se de uma condição de inteligibilidade da sua atuação, que não pode ser violada, sob pena de imensos prejuízos à vida social e à própria integridade do sistema jurídico.

Destaque-se que o Carf é um órgão da administração direta federal, tanto quanto o é a PGFN. É ao Carf que cabe, por força da sua legislação constitutiva, estabelecer com definitividade a posição da administração pública federal em matéria fiscal. A posição da União em matéria de lançamento tributário é o “sim” ou o “não” do Carf, e não o “sim” ou o “não” da PGFN. O postulado de unicidade da vontade do Estado é que permite que se compreendam decisões como as do STF que recentemente afirmaram a eficácia dos acordos de leniência firmados pela administração pública perante todos os órgãos do Estado, incluindo-se os Tribunais de Contas e outros órgãos de controle (MS 35.435, 36.173, 36.496 e 36.526, relator, ministro Gilmar Mendes).

Em segundo lugar, há um impedimento relacionado à separação de poderes. A administração detém competência exclusiva para realizar o lançamento tributário (artigo 142, CTN). Ao Judiciário compete apenas conduzir os processos de execução ajuizados pela PGFN e as cautelares voltadas à garantia do resultado útil das futuras execuções, e nada mais. O Judiciário não pode constituir, ainda que sob provocação da PGFN, o crédito tributário. Trata-se de um dos poucos espaços vedados ao Judiciário. Lembre-se que, mesmo quando a discussão tem o contribuinte no polo ativo, a atuação do Judiciário é meramente negativa (declarar a inexistência da relação tributária ou desconstituir lançamento efetuado pelo Fisco).

Em terceiro lugar, admitir a possibilidade de que um órgão da administração possa se insurgir contra a decisão de outro órgão da administração, especialmente designado, por lei, para a resolução de conflitos na área de sua competência, significa colocar em risco a própria razão de ser de um contencioso administrativo. Se o tribunal administrativo não servir para pacificar a própria vontade do Estado, de quem ele é a voz, qual é a sua utilidade? Viola o princípio da eficiência administrativa (artigo 37, caput, da Constituição) instituir um órgão como o Carf para, por meio de um outro órgão (PGFN), prestigiar as suas decisões apenas quando elas forem favoráveis ao Fisco.

Em quarto lugar, há que se mencionar que permitir a rediscussão judicial das decisões irrecorríveis do Carf favoráveis ao contribuinte significa, na prática, abolir, pelo menos em matéria tributária, o instituto da coisa julgada administrativa. Trata-se de uma das principais garantias do administrado, derivada, de um lado, dos princípios da segurança jurídica (artigo 2º, caput, da Lei nº 9.784/1999) e do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da Constituição), e, de outro, da expressa conformação legal do processo administrativo tributário, segundo a qual as decisões do Carf são “definitivas” (artigo 42 do Decreto nº 70.235/1972). A definitividade, desnecessário dizer, se refere (na verdade, só pode se referir) às ações do Fisco contra o contribuinte.

Por fim, não se deve esquecer que o direito de acesso ao Judiciário, consignado no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, representa um instrumento de garantia do jurisdicionado, e não do poder público. Os direitos fundamentais – o acesso ao Judiciário é um deles – são precipuamente instrumentos de defesa do indivíduo contra o Estado, e não o inverso. São, como se diz, um escudo e não uma espada. Não podem ser usados pelo Estado em desfavor do particular, ainda mais quando o próprio Estado, por meio dos órgãos competentes para formar e exprimir a sua vontade, já se pronunciou em favor do contribuinte.

Maucir Fregonesi Junior e Amauri Saad são, respectivamente, advogado e sócio da área tributária de Siqueira Castro Advogados; e advogado e sócio da área de direito público de Siqueira Castro Advogados

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Fonte: Valor Econômico

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