A crise econômico-financeira continua a suscitar muitas discussões interessantes, como a de suas relações com os padrões globais de produção e consumo, além da capacidade de reposição de recursos naturais pelo planeta. Ou com os modelos de produção de energia, que contribuem poderosamente com suas emissões de poluentes para mudanças climáticas. Ou com a concentração da renda mundial nos países industrializados (perto de 80% do total, segundo a ONU) e, em cada país, em estratos muito minoritários da população – e a contribuição dessa má distribuição para que haja 1 bilhão de pessoas que passam fome e uns 40% da humanidade vivam abaixo da linha da pobreza. É importante que todas essas discussões se aprofundem.
Mas, no caso brasileiro, toma vulto o debate sobre a queda de atividades econômicas e sua influência no valor dos repasses, pela União, do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), que é proporcional ao número de habitantes em cada município e tem por base o IPI e o Imposto de Renda (IR). Desde janeiro vem caindo o repasse e já se prevê (Estado, 20/3) que este ano a arrecadação federal daqueles impostos se reduzirá em R$ 48,3 bilhões (de R$ 805,2 bilhões para R$ 756,9 bilhões), assim como diminuirá em R$ 5 bilhões o repasse de royalties a municípios pela extração de petróleo. A previsão era de que a União transferisse pelo FPM R$ 143,2 bilhões este ano, mas agora se preveem R$ 127,3 milhões. Como entre 70% a 80% dos municípios brasileiros não dispõem de fontes próprias de arrecadação – não cobram nenhum imposto e mesmo os que cobram são afetados -, a crise está instalada, com reflexos nas campanhas eleitorais que se aproximam.
Além disso, são muitas as discussões sobre a conveniência e a adequação, para estimular a economia, de reduções de impostos que têm beneficiado veículos e outros itens, e que já somam R$ 8,9 bilhões (Estado, 2/4). Há quem pergunte por que foram escolhidos esses setores e não outros. Por que não se exigiram contrapartidas, como a obrigatoriedade de reduzir as emissões de poluentes. Por que não se reduzem também impostos pagos pelos estratos mais pobres da população – nos produtos alimentícios e outros itens essenciais. Por que se continua a privilegiar setores que exportam (veículos, produtos do agronegócio, eletrointensivos, entre outros), quando, nestes, grande parte dos benefícios da redução são transferidos para os importadores/comerciantes/consumidores no exterior. Só no ano passado, as “desonerações tributárias” para alguns desses setores somaram R$ 18 bilhões, segundo a Receita Federal (Folha de S.Paulo, 26/3). Mais recentemente, foram perdoados débitos de R$ 3 bilhões para 1,15 milhão de contribuintes (800 mil empresas, 356 mil pessoas físicas) já inscritos na dívida ativa (que é, no total de R$ 654 bilhões, perto de 25% do PIB). Neste mês de abril permitiu-se a 40,2 mil produtores rurais reduzir em até 70% débitos que totalizam R$ 7,2 bilhões.
Nem se pode dizer que é uma prática nova, inventada pelo atual governo. Em 1997 e 1998 instituiu-se um processo de renegociação de dívidas de Estados e municípios, com subsídios na taxa de juros, que em dez anos, segundo o Ipea, significou R$ 106 bilhões (Estado, 17/3). E já há quem fale em novo reparcelamento dessa dívida. Na mesma hora, relembra o Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário que a sonegação de impostos (principalmente contribuições para a Previdência, ICMS e IR) por empresas em 2008 chegou a R$ 200,29 bilhões (que equivalem a cerca de 32% do Orçamento da União), para um faturamento empresarial de R$ 800 bilhões.
Neste jornal (3/3), o comentarista Celso Ming, com propriedade, perguntou por que as desonerações não têm beneficiado pequenas e médias empresas, exatamente as que mais trabalhadores empregam, cerca de 6 milhões. Outros analistas têm enfatizado a injustiça de não serem beneficiados setores em que as camadas menos favorecidas têm maior participação no consumo. Nos 33,5% do PIB que a carga tributária representa, quase dois terços são pagos igualmente por pobres e ricos. Muitas outras perguntas podem ser feitas. Como, por exemplo: quando o Congresso Nacional vai votar uma reforma tributária que ponha fim à chamada “guerra fiscal”, que já custa algumas centenas de bilhões de reais aos Estados e municípios envolvidos, que concedem isenções a empresas sob o pretexto de atraí-las para se instalar em seus territórios? É um argumento que já não se sustenta, uma vez que praticamente todos os Estados oferecem os mesmos incentivos e o que decide mesmo são outros fatores, como logísticas de mercado, de transportes, de matérias-primas e insumos, entre outros. Mas nesse contexto os consumidores continuam pagando os impostos sobre os produtos (ICMS, ISS e outros), que não são recolhidos pelas empresas beneficiárias – num sistema com forte contribuição para os processos de concentração de renda no País.
São muitos caminhos. Como o que permite ao Tesouro Nacional contingenciar parte dos recursos arrecadados pela cobrança por uso de água nos comitês de gestão de bacias hidrográficas, e que deveriam ser totalmente aplicados na própria bacia. Já houve ano em que o contingenciamento foi superior a todo o orçamento anual da Agência Nacional de Águas. Ou a legislação que permite a usinas hidrelétricas considerar pagamento pelo uso da água as importâncias que transferem aos municípios inundados pela construção de reservatórios. Ou ainda o pagamento da sociedade, em suas contas de energia, a termoelétricas (de novo em evidência) durante os anos em que nada produzem, porque não se necessita de sua energia altamente poluidora. Seria muito oportuno, necessário mesmo, que o País todo pudesse ser informado em pormenores sobre a composição e a destinação dos impostos que paga. Para que a sociedade comece a influir nesses rumos e os torne mais adequados.
Fonte: O Estado de São Paulo