O embate judicial travado em razão da contribuição ao Seguro de Acidente do Trabalho (SAT) representa mais do que a velha e conhecida tensão entre o Fisco e os contribuintes. O recente aumento da tarifação acidentária, travestido de incentivo à prevenção de acidentes, é uma esquisitice previdenciária que pode ser explicada, em parte, por um fenômeno jurídico denominado “deslegalização”.
“Des-legalizar”, na essência, significa “des-cartar” da contextura da lei possíveis supérfluos jurídicos. No caso das leis tributárias, há quem entenda que já não há mais espaço para dogmas como o da legalidade tributária e da tipicidade.
Existe um precedente do Supremo Tribunal Federal (STF) – o RE 343.446-SC -, considerado um ícone da doutrina da “deslegalização”. Ricardo l. Torres aponta esse precedente como referência de “flexibilização da legalidade”; Godoi o refere como uma “peremptória negação da chamada teoria da reserva absoluta de lei formal ou tipicidade fechada”. Isto porque o Supremo afirmou que: “O fato de a lei deixar para o regulamento a complementação dos conceitos de atividade preponderante e grau de risco leve, médio e grave, não implica ofensa ao princípio da legalidade genérica, CF, art. 5º, II, e da legalidade tributária, CF, art. 150, I”. No entanto, se observarmos a conduta administrativa que se desenvolveu no espaço de “deslegalização” do SAT, não se pode desejar outra coisa senão vida longa ao formalismo no contexto tributário-regulamentar brasileiro.
Veja-se a complementação do conceito de atividade preponderante. Para cobrar pela alíquota máxima do SAT, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) generalizou, em sentido extremo, o risco do setor de produção para todos os estabelecimentos da empresa (Decreto nº 2.173). Como a remuneração do pessoal administrativo é bem superior a do pessoal de produção, o interesse arrecadatório ficou evidente.
Para impedir o cômputo do pessoal administrativo na definição da atividade preponderante, o INSS expediu a ON nº 2/97, considerada ilegal pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que também condenou a generalização dos estabelecimentos (Súmula nº 351). O INSS respondeu retirando da CNAE o código que identificava a administração das empresas, e, indômito, manteve o critério generalizante nos enquadramentos dos Decretos de número 6.042 e 6.957, em franco desrespeito à súmula 351. A ilegalidade contaminou, inclusive, a metodologia do nexo epidemiológico.
Na questão da complementação dos graus de risco, os reflexos da “deslegalização” são ainda piores. O standard legal assumido pelo Supremo como pressuposto de legitimidade da delegação legislativa, consistia na necessidade de observação estatística a fim de estimular investimentos em prevenção de acidentes. Contudo, tal pressuposto não foi concretizado durante décadas. Os regulamentos também previam a redução das alíquotas do SAT em até 50% a fim de estimular investimentos em prevenção, mas esses dispositivos jamais foram operacionalizados. Desde que a sistemática dos graus leve, médio e grave foi introduzida na legislação (Lei nº 6.367, de 1976), até o ano de 2007, a regulamentação das classificações de risco permanecem na mais absoluta obscuridade.
O Decreto nº 6.042, de 2007, serviu-se de modo ilegítimo da epidemiologia, transmutando a CNAE em uma classificação nacional de atividades perigosas, e a CID em uma classificação internacional de doenças do trabalho. O ato médico pericial foi aviltado, e as doenças comuns da população foram direcionadas para o ambiente do trabalho das empresas sob protestos de entidades científicas.
Por fim, observamos a mais recente tipificação administrativa, o Decreto nº 6.957, de 2009, com a premiação do Fator Acidentário de Prevenção (FAP). Trata-se de mais um ato secreto do INSS, que se razoável fosse, não estaria a congestionar o Judiciário com milhares de ações. Neste caso, a complementação administrativa conseguiu o prodígio de atribuir o malus para as empresas e o bônus para o INSS. É o tipo de extrafiscalidade a se esperar de um órgão que vive sob constante pressão arrecadatória.
Felizmente, há quem reprove essas políticas públicas esquisitas que eclodem como subproduto da deslegalização. Leandro Paulsen, por exemplo, observa que a Lei nº 8.212/91 “delegava ao Executivo juízos de valor que implicariam verdadeira integração normativa da norma tributária impositiva, com violação à legalidade tributária”. E referindo-se ao precedente do Supremo, RE 343.446-SC, arremata, “O STF, pois, na época, acabou dando corda para o Executivo, de maneira que prosseguiu este regulamentando à matéria, o que culmina, agora, com a questão do FAP, prevista na Lei 10.666/03”.
É temerária a exploração utilitarista desse julgado como se fosse uma porteira sem eira nem beira para chancelar a expedição de leis deslegalizadas e regulamentos libertários. Num país onde o legislativo é marcado pela corrupção, a administração pelo casuísmo oportunista, e a gestão do SAT vê-se à mercê de um órgão onde a fraude tornou-se endêmica, ser conservador é pouco. A “deslegalização” do SAT permite que o Executivo se mova com uma desenvoltura tal que atenta contra o Estado de direito.
Fonte: Valor Econômico