A Responsabilização objetiva de uma Ficção jurídica

Talvez seja precipitada a crítica, mas desde a edição da Lei nº 12.846/2013, com a redação do art. 19, III, que prevê a “dissolução compulsória da pessoa jurídica”, quando da constatação dos atos previstos no art. 5º, do mesmo diploma legal, gera uma certa resistência quanto à previsão de responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pelas práticas de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira.

A primeira resistência é pela quantidade de verbos do art. 5º. São pelo menos vinte verbos (prometer, oferecer, dar, financiar, custear, patrocinar, utilizar, ocultar, dissimular, frustrar, fraudar, ajustar, impedir, perturbar, afastar, criar, celebrar, obter, manipular, dificultar), sem repeti-los.

Deste rol apresentado, a primeira indagação que fundamenta a estranheza de tal previsão legal é: tal rol é taxativo ou exemplificativo? Se for taxativo, basta o infrator praticar qualquer outro além dele. Caso contrário, se for exemplificativo o rol, haverá punição/sanção sem prévia lei que defina a conduta como delituosa, o que contrariará o art. 1º do Código Penal, que fixa que: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal”.

Diante das considerações a respeito da primeira resistência, advém outro questionamento: qual é a natureza jurídica da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013)? Se está diante do Direito Administrativo Sancionador e/ou Direito Penal? Ou mais, é Direito Econômico, vez que adentra em aspectos econômicos regulados e sancionados pelo Direito?

Evidente que não se pretende responder tais indagações, apenas refletir a respeito.

A segunda resistência reside no aspecto da “responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública”. Ganha roupagem nova o instituto da responsabilidade civil, nesse particular passa a ser regra e não exceção, o que gera estranheza, vez que, num primeiro viés, o ente fictício não pratica ato, na medida em que depende de alguém que se valha dele para tanto. Por outro, justamente por não possuir vontade, intenção, ser detentor de livre decidir, é que não se pode esperar o dolo, e sem este elemento (dolo), não se falaria em responsabilidade subjetiva, e sim objetiva, conforme o Decreto nº 11.129/2022.

Logo, a segunda resistência encontra um fundamento para tentar afastar a responsabilidade objetiva, mas por outro vê justificativa para manter a responsabilização objetiva. É um decreto — que regulamenta a Lei Anticorrupção —, um tanto quanto polêmico e curioso. Instiga e reivindica atenção mais acurada.

A terceira resistência é no aspecto da ficção jurídica[1] que a pessoa jurídica é em sua essência. Mesmo que o Código Civil brasileiro tenha adotado a teoria da realidade das instituições jurídicas[2],  isso não lhe retira o caráter de ente abstrato, ficcional, criação da vontade humana. Logo, a pessoa jurídica passa a existir pela autonomia da vontade humana, a existência legal com o ato constitutivo arquivado no órgão competente, (p.ex. art. 45, CC/02). Tanto é que a partir de então, há autonomia patrimonial, legitimidade processual e titularidade obrigacional, que não se confunde com as do seu (ou seus) criador(es).

Essa distinção, inclusive, e importa em afirmar, justifica a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, (art. 50, CC/02, e art. 28, CDC) (disregard of the legal entity). Desconsiderar é exceção, a regra é preservar e proteger ao máximo, vez que fomenta o princípio macro do Direito Empresarial, princípio da preservação da empresa.

A quarta e última resistência — a priori — analisando o Decreto nº 11.129/2022, parece esbarrar justamente no princípio mencionado acima: preservação da empresa. Contudo, assim como acima se mostrou com fundamento e justificativa, nesse particular o decreto em análise prévia, também se justifica no vetor da função social da empresa, ora, se ela se desvia de sua finalidade, e tal desvio acarreta prática delituosa, nos termos definidos pelo rol (taxativo/exemplificativo), do art. 5º, talvez seja a razão para a sua dissolução, vez que distorceu o que seria sua função social, e passou a ser um mau social, e por óbvio, deve(ria) ser extirpado do mercado, ambiente de negócios, etc., a fim de tutelar o próprio mercado e os agentes econômicos que nele interagem, inclusive, e sobretudo os consumidores.

Não soa como a melhor técnica a ponderação entre: o princípio da preservação da empresa ou o princípio da função social da empresa, a fim de fundamentar uma decisão judicial que queira valer-se da Lei Anticorrupção — regulada pelo referido decreto —, para dissolver ou não a pessoa jurídica. Com máximo respeito, ao que parece — a priori — é que o magistrado e o administrador, enfim, o órgão decisório deve, e mais do que nunca, olhar e levar a sério o art. 20 da LINDB, considerar as consequências práticas da decisão de dissolver compulsoriamente uma ficção jurídica por lhe atribuir responsabilização objetiva por atos praticados por pessoas naturais (gestores, administradores, empregados, entre outros). Basta pensar e considerar a consequência aos empregados, aos fornecedores, aos consumidores, aos prestadores de serviços, o impacto na arrecadação fiscal, a implicação nos contratos empresariais, e tantos outros reflexos que talvez o legislador não tenha se atentado que é o encerramento compulsório de uma pessoa jurídica. Mas tudo isso, como dito, é — a priori —, o que não é — a priori — serão as consequências, estas sim, serão — a posteriori.

GUSTAVO AFONSO MARTINS – Doutorando em Direito Empresarial e Cidadania pela Unicuritiba. Advogado e professor.

Fonte: JOTA

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