Não existe coisa mais comum do que o proprietário de uma loja pegar dinheiro do caixa para comprar pãozinho ou cigarro. O problema, mal sabe o comerciante, é que ele está infringindo uma das regras mais básicas de contabilidade ao misturar a pessoa física com a jurídica. E o pior é que isso traz sérias conseqüências para ele e a empresa. Os resultados podem ser trágicos e vão da falência a pesadas multas e problemas com a Receita Federal do Brasil.
“Posso afirmar que muitos casos de falência se devem à mistura que os empreendedores fazem da vida financeira pessoal com a empresarial. Apesar de terem certeza que contabilizaram todos os lucros e despesas corretamente, a maioria não encontra o capital que parece ter desaparecido pelo caminho”, diz a contadora Dora Ramos, sócia da Fharos Assessoria Empresarial.
A confusão é mais comum ainda para aqueles que trabalham em empresas de uma pessoa só, os famosos “contratados como PJ”, que recebem uma vez por mês. Esses chegam a pagar contas domésticas, como luz e condomínio, com o dinheiro da pessoa jurídica. A desculpa é sempre a mesma: “todo o lucro da empresa é meu mesmo, sou o único sócio”. Mas não é bem assim.
Na mira do fisco
Para a Receita, há o princípio da entidade, a companhia – não importa o tamanho – tem que funcionar como uma pessoa. O salário do proprietário, o pró-labore, é visto como uma despesa. E o lucro é o que sobra após o recebimento e pagamento de todas as despesas. Ao passar todo o lucro da conta da companhia para a de pessoa física, o fisco pode entender que o proprietário está disfarçando a distribuição de lucros, diz a contadora.
Segundo ela, para evitar problemas, o sócio tem sempre que estabelecer um pró-labore real. Se for empresa de uma pessoa só, normalmente enquadrada no Simples Nacional, o correto seria que essa quantia correspondesse a todo o faturamento menos o imposto (DAS) e o pagamento do contador. O problema é que nesse caso o proprietário teria que pagar Imposto de Renda (IR) na fonte, com alíquota entre 15% e 27,5%, dependendo do valor recebido.
Além disso, de acordo com a atividade da empresa e se está no Simples ou não, teria de pagar 20% do valor do pró-labore para o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). “Para esses que são funcionários, mas trabalham disfarçados de empresários, os impostos inviabilizam agir corretamente. E, em geral, esse sistema de trabalho não é uma escolha, é uma regra de mercado de algumas profissões”, diz Dora.
Na prática, o que acontece é que se estabelece um pró-labore baixo, de um ou dois salários mínimos, e o contador “faz malabarismos” para justificar o que eles chamam de distribuição de lucros.
Mistura perigosa
A comerciante Priscila Irani é o retrato dessa confusão. Ela tem um box de laticínios no Mercado da Lapa há dois anos e deveria ter pró-labore de R$ 1 mil mensais, mas nunca retirou esse dinheiro e, normalmente, mistura suas contas pessoais com as da empresa. “Pego dinheiro do caixa para pagar conta de casa, fazer a unha, qualquer coisa. E dou baixa do valor no fim do dia. Nunca me preocupei se tinha que repor esse dinheiro ou se não deveria pegá-lo”, afirma.
A confusão é ainda maior porque Priscila comprou a empresa em processo de falência e injetou dinheiro. “Coloquei recursos meus para pagar fornecedores e dívidas. Só agora, depois de dois anos, consegui acertar as contas com a Prefeitura. Mas, nesse tempo, obviamente, precisei pegar dinheiro do laticínio.” A empresária trabalha também como consultora para uma empresa no Rio de Janeiro e toda a sua renda se mistura, seja de onde vier.
Seu pró-labore foi estabelecido apenas para que ela pudesse existir como empresária, e permitisse a compra de algum bem financiado ou coisa do tipo. Segundo o contador e consultor do Centro de Orientação Fiscal (Cenofisco) Lázaro Rosa da Silva, o valor definido pelo contador em geral não passa de R$ 1.372,81 – o teto para isenção do IR.
Caso inadequado também é de Fernando dos Santos Teco Filho, que tem um box de massas, pães e artigos para festas também no Mercado da Lapa. Por ser aposentado e portanto ter outra fonte de renda, o empresário não estabeleceu um pró-labore, apenas retira parte do lucro todo mês. “Como precisamos de capital de giro, a maior parte do lucro volta para empresa. Eu e meu sócio optamos por retirar o que sobra”, afirma. A questão, nesse caso, diz a contadora Dora, é que sem salário fixo o empresário tem a sensação de não receber pelo trabalho. “Isso causa desorganização pessoal”, diz ela.
Brechas na contabilidade
Ao estabelecer uma renda abaixo do real recebido ou não retirar nada, o empresário costuma deixar brechas para a fiscalização da Receita. Em geral, a pessoa adquire bens e tem uma vida financeira completamente incompatível com o pró-labore estabelecido. “Os contadores se preocupam com isso e fazem ajustes nas declarações de imposto, tanto da empresa quanto da pessoa física. Mas é um paliativo”, diz Silva, da Cenofisco.
Segundo ele, a Receita pode cruzar os dados das declarações e a movimentação das contas bancárias. Isso pode acarretar multas e incidência de todo o imposto devido. “O fisco tem cinco anos retroativos para fiscalizar e tributar. Por enquanto, não está fazendo os cruzamentos, ou não tenho conhecimento de alguém que tenha sido multado dessa forma. Mas a tecnologia aumenta a cada dia e facilita que isso seja feito”, afirma o consultor.
Fonte: Audi Factor