Daniel Prochalski
A Constituição Federal de 1988 consagra, em diversos dispositivos tributários, o chamado princípio do destino. Em razão dessa diretriz, as operações internacionais com bens e serviços devem ser tributadas apenas uma única vez no país importador, exonerando, com efeito, os tributos que normalmente incidiriam no país de origem, impedindo o que se convencionou denominar de “exportação de tributos”.
Os objetivos não poderiam ser mais óbvios. É notório que o fortalecimento da economia de um país depende fortemente de saldos positivos expressivos na balança comercial. Ou seja, as exportações devem exceder substancialmente as importações, para o que o preço dos produtos e das mercadorias exportadas deve ser mundialmente competitivo, exigindo, assim, a ausência do custo tributário em sua composição. Como exemplos clássicos de imunidade nas exportações, temos o IPI (art. 153, § 3º, III) e o ICMS (art. 155, § 2º, X, “a”).
No entanto, a desoneração tributária nas exportações não abrange apenas os impostos, pois pouco adiantaria afastar a incidência do IPI e o ICMS e manter a de outros tributos, em especial as contribuições especiais, que hoje representam parcela significativa dos tributos a serem suportados pelas empresas. Destacam-se, dentre tais tributos, a COFINS (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), a contribuição ao PIS (Programa de Integração Social), a CIDE (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) e a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das Empresas).
É nesse sentido a imunidade criada pela Emenda Constitucional nº 33/2001, através da inclusão do § 2º e seu inciso I ao art. 149 da Constituição: “§ 2º As contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico de que trata o caput deste artigo: I – não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação;”.
Ao fazer referência às contribuições sociais, esse dispositivo exige a sua interpretação conjunta com o art. 195, também da Lei Maior, onde tais tributos estão enumerados como fontes de financiamento da seguridade social. O inciso I, alínea “c” deste art. 195 define, de forma expressa, a competência federal para a instituição da CSLL, o que por si só leva à conclusão de que as receitas oriundas de exportação estão imunes à incidência deste tributo.
Com fundamento em uma interpretação inequivocamente literal, o fisco federal, no entanto, defende que a imunidade em tela aplica-se tão-somente às contribuições sociais incidentes diretamente sobre as receitas. Na prática, portanto, a imunidade alcançaria apenas a contribuição ao PIS e a COFINS. A CSLL, por incidir sobre o lucro das pessoas jurídicas, incidiria normalmente, posto que lucro e receitas não se confundem.
Diante desse posicionamento do fisco federal, é preciso esclarecer se é válida a interpretação meramente literal de um dispositivo constitucional que outorgue imunidade, como é o caso do art. 149, § 2º, I, ou se é de rigor que tal dispositivo seja interpretado de forma contextual com o restante do texto constitucional, em especial de forma harmoniosa com os princípios constitucionais. É o que se chama de interpretação sistemática, posto que considera o sistema jurídico como um todo, e não as suas partes isoladas.
É verdade que, quanto às isenções, o art. 111, II, do Código Tributário Nacional estabelece textualmente a regra pela qual a legislação que institui esta espécie de desoneração tributária deve ser interpretada literalmente. Mas mesmo em relação às isenções, nenhuma interpretação séria poderá negar que este comando é inferior às regras de hermenêutica que presidem a intelecção de qualquer norma integrante do ordenamento jurídico, inclusive as constitucionais. Com efeito, mesmo a lei que trate de isenções deve ser interpretada de forma a respeitar os aspectos lógico, teleológico, histórico e, em especial, o sistêmico.
No entanto, lembre-se que nem mesmo estamos tratando de isenções, mas de imunidades que, por sua natureza, são normas constitucionais, a exigir uma interpretação que venha a aplicar os princípios constitucionais pertinentes em sua maior amplitude possível.
O Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, não poderia ter outro entendimento, conforme ilustra a sua seguinte decisão (RE nº 102141/RJ, DJ 29/11/85): “Imunidade tributária. Livro. Constituição, Art. 19, Inc. III, alínea ”d”. Em se tratando de norma constitucional relativa às imunidades tributarias genéricas, admite-se a interpretação ampla, de modo a transparecerem os princípios e postulados nela consagrado.”. No voto do relator, o então Ministro Carlos Madeira, fica clara a impossibilidade de utilizar os mesmos critérios de interpretação válidos para as isenções em relação às imunidades (grifos nossos):
“O art. 111 do CTN impõe a interpretação literal da legislação tributária relativa a suspensão ou exclusão do crédito tributário, a outorga de isenção e à dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias. Essa regra metodológica não diz respeito, porém, às normas constitucionais tributárias, mormente em se tratando de imunidades genéricas, que correspondem à não incidência, em virtude da supressão da competência impositiva ou do poder de tributar certos fatos, ou situações. Não há crédito tributário a suspender ou excluir, porque ele simplesmente não pode ser criado.
Daí porque a interpretação das normas constitucionais de imunidade tributária, é ampla, ‘no sentido de que todos os métodos, inclusive o sistemático, o teleológico, etc, são admitidos’, como anota Amílcar de Araújo Falcão (RDA, 66/372).
A interpretação sistemática da norma constitucional leva à conclusão de que o que caracteriza as imunidades é ‘a circunstância de que com elas o legislador constituinte procura resguardar, assegurar ou manter incólume certos princípios, idéias-força ou postulados que consagra como preceitos básicos do regime político, a incolumidade de valores éticos e culturais que o ordenamento positivo consagra e pretende manter livres de eventuais interferências ou perturbações, inclusive pela via oblíqua ou indireta da tributação. ‘As imunidades, diz ainda o autor acima citado – como as demais limitações ao poder de tributar, consoante o ensinamento de Aliomar Baleeiro, têm assim a característica de deixar ‘transparecer sua índole nitidamente política’, o que impõe ao intérprete a necessidade de fazer os imprescindíveis confrontos e as necessárias conotações de ordem teleológica, toda vez que concretamente tiver de dedicar-se à exegese dos dispositivos constitucionais instituidores de tais princípios'”.
Na medida em que o estímulo às exportações foi inequivocamente inserido na Constituição Federal de 1988 como uma das características econômico-políticas essenciais de nosso país, o raciocínio esposado no trecho do voto acima é legitimamente invocável na defesa da tese pela qual o lucro auferido com receitas oriundas de exportação está protegido contra a incidência da CSLL, face à imunidade prevista no precitado art. 149, § 2º, I, da Constituição Federal.
Ainda que assim não fosse, é de se lembrar que o lucro, quando existente, é uma parte das receitas auferidas pelas pessoas jurídicas e, se essas estão imunes à tributação, aquele, à obviedade, também está. Um exemplo prático bem demonstra a assertiva: para as pessoas jurídicas optantes do lucro presumido, o valor a recolher trimestralmente a título de CSLL é obtido através da aplicação de um percentual sobre a receita (para calcular o valor da base de cálculo presumida) e, sobre esse resultado, é aplicado um novo percentual (alíquota) para se chegar ao valor do tributo a pagar. Matematicamente, portanto, a CSLL a pagar é um percentual (parte) daquela receita inicial. Com efeito, seja analisando o tema do ponto de vista jurídico ou contábil, a única conclusão razoável é a de que o lucro é uma categoria que está intimamente vinculada à receita.
Logicamente, o raciocínio não pode ser outro para as pessoas jurídicas optantes do lucro real, posto que, nesses casos, a diferença reside apenas no fato de que a base de cálculo da CSLL é obtida mediante a apuração do lucro líquido efetivo, ou seja, receitas menos despesas, sem levar em conta aqui os ajustes exigidos pela legislação do imposto de renda. Ou seja, em qualquer caso, na apuração da base de cálculo da CSLL, os contribuintes têm o direito constitucional de excluir as receitas oriundas de exportação, apurando eventualmente a existência de lucro tão-somente a partir das demais receitas, desde que, obviamente, sejam tributáveis.
Com base nesse raciocínio, neste final de ano o Supremo Tribunal Federal já concedeu liminares a duas grandes empresas (Bunge e Embraer), suspendendo a exigibilidade da CSLL sobre as receitas decorrentes de exportação desde o advento dos efeitos da Emenda Constitucional nº 33/2001. Essas decisões são extremamente relevantes, haja vista serem as primeiras manifestações da Corte Suprema sobre o assunto, assim como são potencialmente indicadoras da futura decisão final nesta matéria.
Além disso, essas decisões passam a servir de forte estímulo e precedente para que os exportadores venham a questionar judicialmente essa exigência, agora com melhores chances de êxito. No entanto, é temerário deixar de recolher a CSLL sobre as receitas de exportação sem uma decisão judicial final favorável, ou enquanto a decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal não for proferida.
Enquanto isso, os exportadores devem estar atentos para que seus documentos e demonstrativos contábeis e fiscais tenham clareza em relação à necessária segregação das receitas decorrentes de exportação das demais auferidas, para que seja possível requererem a restituição do que já foi recolhido de forma segura.
Além disso, é importante ter atenção em relação ao prazo prescricional de cinco anos para propor o pedido de restituição, previsto no art. 168 do Código Tributário Nacional, mesmo levando em conta o atual posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre a nova forma de contagem estabelecida pela Lei Complementar nº 118/2005, conforme ilustra o seguinte trecho do voto proferido pelo e. Ministro Teori Albino Zavascki (EREsp 437379/MG – DJ 19/11/2007):
“Assim, na hipótese em exame, com o advento da LC 118/05, a prescrição, do ponto de vista prático, deve ser contada da seguinte forma: relativamente aos pagamentos efetuados a partir da sua vigência (que ocorreu em 09.06.05), o prazo para a ação de repetição do indébito é de cinco a contar da data do pagamento; e relativamente aos pagamentos anteriores, a prescrição obedece ao regime previsto no sistema anterior, limitada, porém, ao prazo máximo de cinco anos a contar da vigência da lei nova.”
Assim, para os pagamentos indevidos efetuados até o dia 08/06/2005, vale a regra anterior, ou seja, o prazo prescricional é de dez anos contados do fato gerador. No caso da CSLL, o fato gerador ocorre no encerramento do ano-calendário (31 de dezembro de cada ano), haja vista ser este o momento em que o lucro líquido já pode ser apurado.
Daniel Prochalski
Fonte: Netlegis