ADI nº 2.588 e mutação jurisprudencial

Por Fábio M. de Andrade

Ao dar sequência ao julgamento da ação direta de inconstituciona- lidade (ADI) nº 2.588, em que a Confederação Nacional da Indústria (CNI) pleiteia que seja declarada a inconstitucionalidade da tributação sobre os lucros de controladas e coligadas no exterior quando de sua mera apuração em balanço (artigo 74, MP 2.158-35/01), o Supremo Tribunal Federal (STF) deparou-se com situações singulares a desafiar a criatividade de seus ilustres membros na incessante busca por soluções estáveis e seguras, essenciais à administração da Justiça.

No dia 17 delineou-se tendência majoritária da Corte no sentido de rejeitar a ação, dando pela constitucionalidade da regra fiscal. Neste sentido o voto-vista do ministro Ayres Britto, bem como o do presidente, ministro Cezar Peluso, que, somados aos votos antes proferidos pela ministra Ellen Gracie, como relatora – que ressalvou a inconstitucionalidade da tributação somente para as coligadas -, e pelos ministros Eros Grau e Nelson Jobim, alcançaram a maioria de cinco votos. No sentido contrário, votaram os ministros Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence, Ricardo Lewandowski, e, na referida sessão, o ministro Celso de Mello.

Ocorre que a situação atual de cinco a quatro contra o pleito dos contribuintes poderá ser confirmada pelo voto do ministro Joaquim Barbosa, hipótese em que se configuraria a maioria absoluta de seis votos, de que resultaria o reconhecimento da constitucionalidade da norma impugnada. Poderia, ainda, configurar empate (cinco a cinco), no qual o quorum para a declaração de constitucionalidade/ inconstitucionalidade não terá sido atingido, e a norma tende a prevalecer, sem, contudo, que a decisão tenha efeito vinculante junto ao Judiciário, podendo o pleito vir a ser renovado no STF, seja em recurso extraordinário (RE), seja em nova Adin. Focando o que interessa à sociedade civil: após dez anos de tramitação da ADI 2.588 estaremos todos na estaca zero.

Todavia, o efeito mais perverso que se vislumbra no deslinde deste tema ocorrerá na hipótese de o voto faltante do ministro Joaquim Barbosa vir a dar pela constitucionalidade da tributação da sociedade controladora brasileira quando da apuração do lucro da controlada estrangeira sem atentar para o fato de que tal decisão envolve efetiva e verdadeira mutação jurisprudencial por parte do STF, em tudo e por tudo equiparável à edição de nova legislação, e, portanto, aplicável só aos fatos futuros, e nunca às situações pretéritas.

É que no julgamento do RE 172.058 (relator ministro Marco Aurélio), a Corte proclamou na composição plena, contra o voto de apenas um ministro, a inconstitucionalidade de dispositivo legal que pretendia tributar como disponibilidade de renda do sócio investidor a mera apuração de lucros pela sociedade investida. Foi com fulcro neste precedente quase unânime da Corte que os ministros Marco Aurélio, Pertence, Celso de Mello e Lewandowski – tendo os três primeiros participado do julgamento do RE – acolheram a alegada inconstitucionalidade de norma produtora de idênticos efeitos, no que tange à tributação internacional.

A corrente hoje majoritária, que não vislumbrou a identidade de situações entre o RE 172.058 e a ADI 2.588, aferrou-se ao argumento de que a investidora brasileira reconhece acréscimo patrimonial pela via do método contábil da equivalência – regime de competência, como bem explicitado no voto do ministro Nelson Jobim, acompanhado pelos ministros Eros Grau, Ayres Britto e Cezar Peluso. Olvidaram-se os ministros – nenhum deles tendo participado do julgamento do RE 172.058 – que, àquela época, já vigorava há quase 20 anos o referido regime contábil da equivalência patrimonial.

Ora, se o mero registro escritural reflexo por parte da sociedade investidora do ganho auferido por controlada ou coligada constituísse situação suficiente a caracterizar a aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica da renda, caberia ao STF tê-lo declarado já no âmbito do julgamento daquele RE. Não o fez. Muito pelo contrário: decidiu naquele precedente que o mero acréscimo patrimonial escritural não configuraria disponibilidade econômica nem jurídica da renda para a sociedade investidora. Cabe registrar, ademais, que a declaração de inconstitucionalidade do texto que pretendia tributar o investidor pela mera apuração de lucros por parte da sociedade investida, adquiriu efeito erga omnes com a edição da Resolução do Senado Federal nº 82, de 1996.

Por isso, caso venha a prevalecer a orientação hoje majoritária no julgamento da ADI 2.588 estar-se-á diante de clara mutação jurisprudencial, em que o STF, seja em virtude da alteração de sua composição, seja pela modificação da orientação de um ou mais de seus membros, decide em sentido diametralmente oposto ao que decidiu no passado.

Neste contexto, impõe-se como medida de cristalina Justiça, em homenagem ao princípio da segurança jurídica, a modulação dos efeitos de decisão que venha a consagrar a posição hoje majoritária do STF, visto que oposta a precedente consagrado pela quase unanimidade dos membros de seu Pleno em julgamento proferido em junho de 1995 (RE 172.058), e não alterado desde então.

Assim, é de se esperar que, na hipótese de filiar-se à corrente hoje majoritária, o ministro Joaquim Barbosa, ao proferir seu voto, reconheça explicitamente a ocorrência de mutação jurisprudencial, suscitando questão de ordem quanto à modulação dos efeitos da decisão, que, por ser pela constitucionalidade do texto impugnado, submeter-se-á à deliberação da maioria absoluta, afastada a qualificação de quorum requerida para as declarações de inconstitucionalidade. Em não o fazendo, caberá à CNI suscitar a modulação em embargos de declaração

Fábio Martins de Andrade é advogado em São Paulo, cotitular de Andrade Advogados Associados, e doutor em direito público pela UERJ

Fonte: Valor Econômico

Compartilhar