Assembleia de credores não é soberana se há ilegalidades

Por Henrique Cavalheiro Ricci

Dias atrás o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.314.209/SP, reconheceu a possibilidade de controle judicial do plano de recuperação aprovado pela assembleia-geral de credores, deixando claro aquilo que já parecia óbvio, que a “soberania” da assembleia não implica na impossibilidade de controle judicial do plano de recuperação.

No voto da ministra relatora, Nancy Andrighi, acompanhado por unanimidade pelos demais ministros da 3ª Turma, restou expresso que “a obrigação de respeitar o conteúdo da manifestação de vontade, no entanto, não implica impossibilitar ao juízo que promova um controle quanto à licitude das providências decididas em assembleia. […] A vontade dos credores, ao aprovarem o plano, deve ser respeitada nos limites da Lei. A soberania da assembleia para avaliar as condições em que se dará a recuperação econômica da sociedade em dificuldades não pode se sobrepujar às condições legais da manifestação de vontade representada pelo Plano”.

Pois bem. Muitas foram as mudanças introduzidas pela Lei 11.101/2005, inúmeras delas relativas a aspectos procedimentais do processo falimentar. Críticas à parte, tais alterações atualizaram o processo falimentar, que é o meio pelo qual, em regra, são executados os devedores empresários insolventes.

Porém, relativamente ao devedor empresário em crise (não insolvente, mas em vias de tornar-se insolvente) a opção do legislador foi bem distinta, não se contentando em “atualizar” aspectos procedimentais. A ele, então, foi reservado o instituto da recuperação, judicial e extrajudicial, de empresas.

A quebra de paradigma foi tamanha, que justificou a abolição da expressão “concordata” e a utilização da nova nomenclatura “recuperação de empresas”. Dentre outras alterações, uma delas é o próprio aspecto procedimental que é absolutamente distinto — quero aqui chamar a atenção para a completa mudança de perspectiva imposta pela Lei 11.101/2005, pois, pelo aspecto teleológico, visa o processo a manutenção da empresa viável evitando-se, assim, a quebra.

A opção foi deixar isso expresso, o que foi feito no artigo 47: “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.” O referido conteúdo foi batizado de “princípio da preservação da empresa”. É indiscutível a natureza de princípio de tal disposição, bem como sua importância à interpretação e à aplicação da Lei de Recuperação e Falência.

O problema é que, atualmente, vivemos sob o “império dos princípios” e, em seu nome, infelizmente, tem sido admitido praticamente tudo. Não estou a desprestigiá-los, pelo contrário, sigo Celso Antônio Bandeira de Mello, a quem ferir um princípio é mais grave que ferir uma regra e Roque Antonio Carrazza, que entende princípio como a viga mestra de todo o sistema jurídico. Contudo, a leitura distorcida dos princípios, dissociando-os do sistema no qual estão eles inseridos e atribuindo a eles conteúdo que os mesmos não dispõem, tem garantido que verdadeiros absurdos sejam sustentados em nome do princípio da preservação da empresa. Em suma: o princípio da preservação da empresa não dá um cheque em branco para os empresários que pleiteiam a sua recuperação judicial, evidentemente, os planos de recuperação judicial também se submetem ao controle do Judiciário, como ficou claro no julgamento do REsp 1.314.209/SP.

É comum encontrar planos de recuperação prevendo deságio de mais de 50%, com carência de 12, 24 e até 36 meses e saldo em 120, 180 e até 240 parcelas mensais, tudo isso, claro, sem juros e, às vezes, até sem correção.

Com a bandeira da preservação da empresa em mãos dizem alguns que, tratando-se de direito disponível, tais medidas são possíveis desde que aprovada pela assembleia-geral de credores, indo além, ao afirmar que a decisão da assembleia é soberana, não admitindo controle pelo Poder Judiciário! Esquecem-se, todavia, que no Brasil prevalece a garantia da inafastabilidade do Judiciário (art. 5.º, XXXV, CF).

Se é dado ao Poder Judiciário o controle de atos administrativos, leis e até mesmo emendas constitucionais, por que excluir de sua apreciação a decisão “soberana” da assembleia? Sinto, mas no sistema brasileiro não há tal previsão, e, com acerto, o STJ assim entendeu. Aqui, plano ilegal, violador de direitos e garantias fundamentais, não só pode como deve ser objeto de controle judicial. Além do já citado REsp 1.314.209/SP, merecem destaque os julgamentos dos recursos de Agravo de Instrumento 0168318-63.2011.8.26.0000 e 0136362-29.2011.8.26.0000, ambos de relatoria do desembargador Pereira Calças, pela Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Segundo a Constituição Federal, “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I — soberania nacional; II — propriedade privada; III — função social da propriedade; IV — livre concorrência; V — defesa do consumidor; […]”. Claramente se percebe que o sistema constitucional não permite planos de recuperação com previsões como as acima descritas.

Os planos não podem prever a cumulação de deságio com extensos prazos de pagamento e com previsão de parcos índices de correção, pois se se deve garantir a preservação da empresa devedora e óbvio que esta continuidade não deve ser feita em detrimento da preservação e continuidade da empresa credora. Em outras palavras: o princípio da preservação da empresa não deve ser visto exclusivamente à luz do devedor, impondo violações absurdas à propriedade dos credores e à sua própria preservação. Em casos assim o Judiciário não só pode, como deve, deixar de homologar tais planos, reconhecendo a invalidade de todo o plano ou de parte dele.

Recentemente uma grande empresa de Santa Catarina requereu sua recuperação judicial, pretendendo discutir e novar créditos que se aproximam de R$ 1,5 bilhão. Pergunta-se: quem é o hipossuficiente? Quantas serão as empresas atingidas? Para salvar essa empresa deve-se permitir a quebra das demais?

Vou além: é violando a propriedade privada, os postos de trabalhos, muitas vezes a boa-fé e a própria preservação dos credores que se promoverá a função social das empresas que pleiteiam recuperação judicial e se estimulará a atividade econômica? A resposta não parece ser positiva.

Ainda com base na preservação da empresa, tem-se sustentado a possibilidade de ser deferida a recuperação judicial, mesmo que não obtido o quórum de aprovação ou percentual previsto para cram down, nos termos, respectivamente, do “caput” e parágrafo 1.º, do artigo 58, da Lei 11.101/2005.

Votar contra o plano, não é abuso de voto. Ora, se a Lei possibilita o voto favorável ou contrário, como concluir que o voto contrário é abusivo? Trata-se, a bem da verdade, do exercício de um direito. Vale lembrar que o voto contrário não é simplesmente a rejeição a uma proposta de pagamento, pelo contrário, vai muito além desse pensamento simplista, já que pode ele advir da própria falta de confiança na viabilidade do empreendimento. A grande maioria dos planos não se constitui como peças que preveem a reestruturação da sociedade devedora (o que deveria ser feito à luz do artigo 50 da Lei de Recuperação e Falência), muitos são feitos mediante emprego das ferramentas “copiar e colar”, baseando-se quase que exclusivamente na redução do passivo e na postergação de sua exigibilidade.

O raciocínio no qual, mesmo não obtido os percentuais previstos no artigo 58, da Lei 11.101/2005, seria possível a concessão da recuperação, coloca nas mãos do credor, praticamente de forma exclusiva, a análise de sua própria viabilidade. Mas, não é esse o mister da assembleia? Aliás, para que assembleia então, se é o credor único legitimado a proclamar sua viabilidade? O princípio da preservação da empresa criou o dever do voto favorável? Logo surgirão defensores da responsabilidade civil daqueles que votarem contra o plano…

Teses desse gênero têm criado uma absoluta dicotomia entre interesses dos credores e devedores, em completo descompasso ao previsto na Lei. O que se tem visto é ineficácia da Lei 11.101/2005 no que tange à reestruturação econômico-financeira das empresas que, ainda que obtenham a aprovação e homologação do plano, não têm conseguido se reestruturar, pela ineficiência dos planos apresentados (ou porque estes só têm se prestado a reduzir passivo). Tem sido esquecido que, para efetiva recuperação, não basta a aprovação do plano e posterior homologação. Os interesses dos envolvidos têm que convergir para o mesmo sentido: a recuperação e equilíbrio da empresa, garantindo a sua preservação, respeitando os credores e, igualmente, garantindo a preservação destes.

Henrique Cavalheiro Ricci é advogado do escritório Medina & Guimarães Advogados Associados e professor de Direito Falimentar na PUC-PR.

Fonte: Conjur

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