Por André Mendes Moreira
Em dezembro de 2008, por meio da Medida Provisória nº 449 – posteriormente convertida na Lei nº 11.941 – a Lei Orgânica da Seguridade Social (nº 8.212/91) foi modificada, passando a estipular, em seu artigo 43, parágrafos 2º e 3º, que as contribuições previdenciárias (calculadas, em regra, à alíquota de 20% sobre a remuneração paga aos trabalhadores) se tornam devidas a partir do momento em que o serviço é prestado ao contratante e não quando do recebimento da remuneração pelo obreiro. Logo, se o serviço foi executado no passado e o pagamento da verba pecuniária ocorre somente em momento posterior, ter-se-á a incidência de juros e multa moratória sobre as aludidas contribuições.
A nova redação da Lei da Seguridade Social, portanto, traz como consequência o fato de que as contribuições previdenciárias devidas sobre verbas remuneratórias pagas no âmbito de condenações trabalhistas deverão ser acrescidas de juros e multa. Afinal, a ação trabalhista se presta exatamente a viabilizar o recebimento, pelo reclamante, da remuneração não paga no tempo devido, sendo certo ainda que as contribuições previdenciárias são cobradas de ofício do reclamado pelo juiz do Trabalho, em obediência ao artigo 114, VIII da Constituição da República.
A norma em comento adveio com o fito de elevar a arrecadação previdenciária, modificando entendimento já consolidado no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que – aplicando o Regulamento da Previdência Social vigente até 2008 – considerava devidas as contribuições previdenciárias tão-somente após o pagamento da remuneração ao empregado. De fato, em mais de uma oportunidade o TST assentou que “só haverá incidência de juros de mora e de multa se a parte executada não efetuar o recolhimento da parcela devida ao INSS no prazo que lhe faculta a lei, qual seja, até o dia dois do mês subsequente ao pagamento realizado ao obreiro” (RR nº 129400-39.2008.5.06.0311, relator ministro Maurício Godinho Delgado).
A nosso sentir, a solução que o TST conferia ao problema – com fulcro nas normas então vigentes – é a única compatível com o texto constitucional e deve, mesmo à luz das atuais disposições legais, continuar sendo aplicada. Isso porque a Constituição é clara ao prescrever, em seu artigo 195, I, a, que a contribuição previdenciária incide sobre os valores “pagos ou creditados” à pessoa física que lhe preste serviço. Por conseguinte, é a própria Lei Maior que esclarece não ser possível a cobrança do tributo antes do “pagamento ou crédito” do valor devido ao empregado. A questão, que está sub judice, ainda não foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a quem competirá, em última instância, avaliar a compatibilidade do artigo 43, parágrafos 2º e 3º da Lei nº 8.212, de 1991 com o artigo 195, I, a da Constituição. Com a esperada declaração da invalidade do dispositivo, todo pagamento de juros e multa com espeque na mora decorrente do lapso temporal entre a prestação do serviço e a percepção da remuneração pelo obreiro se tornará indevido, ensejando ainda o direito à restituição dos valores pagos no passado, observado obviamente o prazo prescricional para tanto.
Inobstante, mesmo na hipótese de as Cortes Superiores entenderem legítima a nova norma, a vitória do Fisco não será integral, por uma questão de coerência. Uma vez reconhecido que o fato gerador da contribuição previdenciária ocorre no ato da prestação do serviço (e não quando do pagamento da correspondente remuneração), sempre que o serviço tiver sido prestado há mais de cinco anos contados da data em que o pagamento da verba for realizado (o que não é incomum em ações trabalhistas), a totalidade da contribuição previdenciária respectiva (principal, juros e multa) não deverá ser recolhida, pois estará extinta por força da decadência. Explica-se: em direito tributário, o prazo decadencial para que o Fisco possa cobrar tributos devidos e não pagos pelo contribuinte é de cinco anos, contados do fato que gerou o dever de recolher a exação. Se a contribuição previdenciária (que é tributo) torna-se devida quando da prestação do serviço (regra prevista atualmente na Lei da Seguridade Social), e não quando do pagamento do valor ao obreiro, toda vez que a prestação do serviço tiver ocorrido há mais de cinco anos, contados da data em que a correspondente remuneração for paga, o direito do Fisco de perceber a contribuição e seus consectários terá decaído. E a decadência, consoante o Código Tributário Nacional (artigo 156, V), ocasiona a extinção do próprio crédito tributário, liberando o contribuinte de toda e qualquer exigência fiscal.
Portanto, ainda que o Poder Judiciário legitime as novas disposições da Lei da Seguridade Social, não se poderá dizer que a pretensão fiscal terá sido a única a prevalecer. Como já diziam os romanos: “Onde há a mesma razão, deve haver a mesma disposição”. Se há interesse na cobrança de juros e multa pela mora, não se pode olvidar que essa mesma mora pode, em determinadas situações, ocasionar a extinção do crédito da Fazenda Pública.
André Mendes Moreira é doutor em direito pela USP e sócio de Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados
Fonte: Valor Econômico