É União quem tributa industrialização por encomenda

Por Gustavo Brigagão

Na Europa, a tributação indireta se dá por meio de um único tributo, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA), cuja cobrança é promovida pelo governo central de cada um dos Estados Membros. No Brasil, o cenário é bem diferente: a competência para a tributação indireta é dividida entre as três esferas de governo. Paralelamente à incidência das contribuições sociais, outorga-se à União competência para tributar a cadeia industrial (com o IPI), aos estados, a circulação de mercadorias (com o ICMS), e aos municípios, o setor de serviços (com o ISS).

Não obstante essa divisão de competências, há atividades que, objetivamente consideradas, apresentam características próprias tanto de industrialização como de prestação de serviços, o que lhes deixa vulneráveis à incidência de mais de um tributo (apesar da ocorrência de um só fato gerador). É o caso, por exemplo, das atividades de recondicionamento, acondicionamento, montagem e beneficiamento, exercidas em bens de terceiros (“industrialização por encomenda”), que, por má técnica legislativa, estão previstas tanto como hipótese de incidência tanto do ISS quanto do IPI, nas respectivas legislações de regência.

Mas, como definir o divisor de águas em situações como essa?

De acordo com as regras constitucionais aplicáveis, a lei complementar é o instrumento apto a dirimir eventuais conflitos de competência que decorram da cobrança de tributos sobre o mesmo fato gerador (artigo 146). Busca-se, assim, evitar que determinado ente tributante invada a competência de outro.

Nos termos em que definida, a competência da União para a cobrança do IPI está, em regra, circunscrita ao conjunto de etapas que compõem o ciclo de industrialização do produto. Esse conjunto de etapas se dá, obviamente, na fase anterior à aquisição do produto para consumo final. A partir dessa aquisição, as atividades que tenham aqueles bens por objeto passam a ter a natureza de serviço, sujeitando-se, consequentemente, ao ISS (desde que constem da lista dos serviços tributáveis pelo imposto municipal). Portanto, a aquisição do bem pelo consumidor final é o marco definidor da incidência de um tributo ou outro.

Sob essa lógica, o Decreto Lei 406/1968, ao listar, com força de lei complementar, as atividades de beneficiamento, montagem, acondicionamento/reacondicionamento e renovação/recondicionamento, como sujeitas à incidência do ISS, fez expressa referência ao fato de que ele não incidiria nas hipóteses em que os bens objeto das referidas prestações fossem destinados a industrialização ou comercialização.

Havia, assim, em consonância com o estabelecido no texto constitucional, nítida distinção dos campos de incidência do IPI e do ISS no que concerne a atividades relacionadas à “industrialização por encomenda”. Tratando-se de bens ainda inseridos no ciclo industrial do produto, o imposto incidente seria o IPI; se tais atividades fossem exercidas fora desse ciclo, o imposto incidente seria o ISS.

Ocorre que, no dia 31 de julho de 2003, esses dispositivos do DL 406/68 foram revogados pela Lei Complementar 116/03, que passou a regular o ISS em âmbito nacional. A referida Lei Complementar, ao definir os serviços passíveis de serem alcançados pelo imposto municipal, listou, entre outras, as seguintes atividades:

“14 – Serviços relativos a bens de terceiros

14.01 – Lubrificação, limpeza, lustração, revisão, carga e recarga, conserto, restauração, blindagem, manutenção e conservação ele máquinas, veículos, aparelhos, equipamentos, motores, elevadores ou ele qualquer objeto (exceto peças e partes empregadas, que ficam sujeitas ao ICMS).
[…]
14.03 – Recondicionamento de motores (exceto peças e partes empregadas, que ficam sujeitas ao ICMS).
14.04 – Recauchutagem ou regeneração de pneus.
14.05 – Restauração, recondicionamento, acondicionamento, pintura, beneficiamento, lavagem, secagem, fingimento, galvanoplastia, anodização, corte, recorte, polimento, plastificação e congêneres, de objetos quaisquer.
[…]
14.08 – Encadernação, gravação e douração de livros, revistas e congêneres.
[…]
14.11 – Tapeçaria e reforma de estofamentos em geral.
14.12 – Funilaria e lanternagem.” (grifo nosso)

A não referência pela LC 116/03 ao fato de que o serviço deveria se destinar ao consumidor final para que pudesse ser tributado pelo ISS (como havia feito o DL 406/68) fez com que Municípios pretendessem a incidência do imposto sobre a denominada industrialização por encomenda. Afinal, diziam os municípios, tal industrialização se dá sobre bens de terceiros. Logo, por expressa determinação literal dos dispositivos de lei aplicáveis, ela deveria estar sujeita à incidência do imposto municipal.

O Superior Tribunal de Justiça entendeu que essa linha de argumentação é boa e manteve a cobrança do imposto municipal sob o fundamento de que a “industrialização por encomenda” configura obrigação de fazer e está listada como serviço tributável na LC 116/03. Com a devida vênia, tal interpretação viola o princípio da competência privativa que informa o sistema tributário nacional, pelo qual, como visto acima, reserva-se à competência federal e estadual os impostos sobre a produção e a circulação de mercadorias, respectivamente, impossibilitando, assim, a incidência do ISS sobre atividades que tenham aquela natureza.

A LC 116/03 deve, a nosso ver, ser interpretada como se a ressalva que antes constava do DL 406/68 (de não incidência do ISS quando o bem fosse destinado a industrialização ou comercialização) esteja implícita no item 14 da lista anexa, de forma que esse imposto só possa incidir sobre atividades/serviços realizados em bens que sejam destinados ao consumo dos respectivos beneficiários. Do contrário, tendo em vista ser essa claramente uma hipótese em que não se admite a bitributação (por se tratar de competências privativas explicitamente definidas na Constituição Federal), ter-se-ia que a Lei Complementar não teria exercido uma de suas principais funções: dirimir, nessas circunstâncias, o conflito de competência que existiria entre União (IPI) e Municípios (ISS).

Essa conclusão levaria à consequente impossibilidade de cobrança de tributos sobre tais operações, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao julgar inconstitucional a cobrança do Adicional do Imposto sobre a Renda (Adir), por não haver lei complementar que indicasse as regras que solucionariam eventuais conflitos de competência decorrentes das leis estaduais que dispunham sobre o assunto. Eis a ementa da decisão proferida na Ação Direta de Inconstitucionalidade 28-SP, julgada pelo pleno do STF, que ilustra, com exatidão, o entendimento desse tribunal sobre a matéria:

“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Lei n. 6.352, de 29 ele dezembro de 1988, do Estado de São Paulo. Tributário. Adicional de Imposto de Renda (CF, art 155, II), arts. 146 e 24, § 3 da parte permanente da CF e art. 34, §§ 3% 4° e 5% do ADCT. O adicional do imposto de renda, de que trata o inciso II do art. 155, não pode ser instituído pelos Estados e Distrito Federal, sem que, antes, a lei complementar nacional, prevista no capuz do art. 146, disponha sobre as matérias referidas em seus incisos e alíneas, não estando sua edição dispensada pelo § 3° do art. 24 da parte permanente da Constituição Federal, nem pelos §§ 3% 4° e 5° do art. 34 do ADCT. Ação julgada procedente, declarada a inconstitucionalidade da Lei n. 6.352, de 29 de dezembro de 1988, do Estado de São Paulo.” (Revisto Trimestral de Jurisprudência, v. 151, p. 657)

Resultado semelhante na hipótese em exame (“industrialização por encomenda”) só será evitado caso a LC 116/03 seja interpretada no sentido de que as atividades realizadas sobre bens de terceiros somente são alcançadas pela incidência do ISS se forem realizadas fora do respectivo ciclo de industrialização ou comercialização. Adotar-se-ia, no caso, interpretação conforme a Constituição.

O Plenário do STF parece ter seguido tal linha de entendimento quando analisou a Medida Cautelar proposta na ADI 4.389-DF. Nesse julgamento, a Egrégia Corte entendeu que não poderia haver incidência do ISS na impressão gráfica realizada em embalagens, uma vez que elas seriam destinadas a comercialização e, portanto, estariam no campo de incidência do ICMS (e do IPI).

Fazemos especial referência ao voto da ministra Ellen Gracie, que reforçou a tese já defendida com o argumento de que, caso fosse permitida a incidência do ISS, estar-se-ia inserindo um tributo cumulativo entre atividades realizadas no âmbito da produção ou comercialização. Isso que acarretaria o estorno dos créditos anteriormente apropriados e impediria o respectivo creditamento pelas empresas adquirentes. Frustrando, assim, um dos principais objetivos do sistema tributário constitucional brasileiro, que é justamente o de evitar os malefícios econômicos causados pela cumulatividade de incidências na cadeia produtiva.

Por mais esse fundamento, verifica-se que, mesmo após a edição da LC 116/03, as operações de industrialização por encomenda estão sujeitas exclusivamente às regras de incidência do IPI.

Gustavo Brigagão é sócio do escritório Ulhôa Canto, secretário-geral da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro) e presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro.

Fonte: Conjur

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