Enfoque punitivo da Receita gera dívidas impagáveis

Na última semana, o mercado foi abalado pela notícia de que o maior banco privado do país foi autuado pela Receita Federal do Brasil (RFB) a pagar R$ 18,7 bilhões referentes a impostos e contribuições que a instituição teria deixado de recolher em operação de fusão em 2008. O valor cobrado pela RFB supera o lucro líquido obtido pelo banco no ano passado, que foi de R$ 13,5 bilhões.

Segundo comunicado de “fato relevante” ao mercado, “a Companhia considera remoto o risco de perda no procedimento fiscal em referência, entendimento esse corroborado por seus advogados e assessores externos.” O presidente da instituição, inclusive, se disse surpreso com a autuação, que, a seu ver, estaria fundamentada em argumentos frágeis e infirmando operação aprovada por todos os órgãos reguladores competentes (Cade, Banco Central e CVM).

A notícia da autuação bilionária impactou negativamente o preço das ações da empresa, na contramão da Bovespa, que fechou a semana em alta. A RFB se negou a comentar a autuação porque as informações do caso estariam protegidas por sigilo fiscal.

Independentemente de quem tenha razão no mérito, o caso permite algumas reflexões interessantes sobre o papel da administração tributária no país, bem como sobre a importância da transparência e do diálogo nas relações entre fisco e contribuinte.

Em primeiro lugar, se todos os órgãos reguladores que tinham interesse na operação se manifestaram previamente, emitindo pareceres favoráveis, por que a RFB não declarou sua posição também? A fusão em questão, entre Itaú e Unibanco, resultou na formação da maior instituição financeira do país. Foi noticiada nos mais diversos meios de comunicação e debatida por variados interlocutores. O silêncio da RFB à época e durante os cinco anos seguintes não pode ser compensado por um auto de infração dessa proporção, ainda que a legislação conceda prazo de cinco anos para constituição do crédito tributário. A fiscalização tributária deve se preocupar em garantir o cumprimento da legislação com o menor impacto possível no campo econômico, procurando conciliar suas atividades ao tempo e à lógica peculiares ao mercado.

É preciso que a RFB adote postura de órgão regulador em vez de órgão repressor. Embora não exista conceito exato de regulação, em geral pode ser entendida como o conjunto de intervenções estatais e condicionamentos jurídicos que o poder público exerce sobre os agentes econômicos[1]. Essa intervenção deve ocorrer de modo que os objetivos institucionais do Estado sejam atendidos — no caso, o cumprimento da legislação tributária — sem, contudo, inviabilizar a atividade econômica.

A atuação como órgão de regulação exige postura ativa, mais preocupada com a orientação do contribuinte para o correto cumprimento das leis, e não apenas como órgão de repressão, até porque os contribuintes não devem ser enxergados como potenciais criminosos, mas como usuários de um serviço público[2]. Para tanto, são necessários diálogo contínuo e construtivo com o contribuinte e transparência dos critérios interpretativos adotados.

Se houvesse efetiva clareza quanto à posição da RFB desde a época em que a operação foi feita, ou seja, se se soubesse que seria lavrada autuação dessa proporção, os caminhos adotados pelo banco poderiam ter sido outros: (i) a instituição financeira não teria feito a operação; (ii) teria feito, mas procurando se adequar às orientações da RFB e evitando, assim, a autuação; (iii) faria a operação sem se adequar às orientações da RFB, aceitando o risco de ser autuada, mas tendo a possibilidade de fazer provisionamentos, e, ainda, de iniciar a discussão no Judiciário desde aquela época.

Outro aspecto do caso que suscita reflexão é a publicidade de autos de infração e seus respectivos impactos. Se a empresa considera que a operação está em conformidade com a legislação, o que há para esconder? Se o fato relevante já foi comunicado ao mercado e se a instituição financeira está segura de que a autuação é frágil, por que não expor, a todos, os autos de infração e as decisões administrativas proferidas, apontando eventuais inconsistências e reforçando sua posição[3]?

Para mitigar o receio incutido no mercado pela grande autuação, que fez cair o preço das ações da companhia, faria mais sentido revelar os detalhes do procedimento fiscal, e não justamente o contrário, como fez o banco, liberando aviso relativamente vago e alimentando sensação de desconfiança. O sigilo, ao menos neste caso, é prejudicial ao banco. Joseph Stiglitz[4], Nobel de Economia, explica que a divulgação de informações reduz assimetrias entre os vários agentes econômicos e gera estabilidade. Há quem argumente que a abertura de certas questões poderia causar pânico no mercado. Mas, na verdade, como explica Stiglitz, se a informação revelada for importante, se afetar as bases da economia, então sua publicidade permitirá alocação mais eficiente de recursos.

O enfoque da RFB em ações punitivas, em detrimento de postura mais preocupada com a orientação do contribuinte, acaba gerando autos de infração impagáveis, como o do caso em questão, e outros como os dos conhecidos casos da Vale do Rio Doce[5] e da Parmalat[6]. Fato é que provavelmente quase nenhuma empresa brasileira dispõe de R$ 18 bilhões para quitar dívidas tributárias. O problema de lavrar corriqueiramente autos de infração impagáveis tanto não faz sentido que o próprio sistema criou mecanismos para evitar esse desfecho. Não é à toa que os programas de parcelamentos e anistias se tornaram tão populares no Brasil.

É preciso que a Receita Federal adote postura reguladora, procurando conciliar a atividade fiscalizatória com a lógica econômica. Isso exige estabilidade e segurança jurídica, e os caminhos mais eficientes para tanto são o diálogo e a transparência.

Fonte: Conjur

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