Este é o momento de voltarmos nossa atenção para a Lei Complementar nº 214/2025, que inaugura o IBS e a CBS, para refletirmos: “Agora, agora e mais agora?”. É como se estivéssemos diante de uma bola de cristal, tentando desvendar o que está por vir. Embora o Brasil não seja o último país a implementar o IVA e tenha, sem dúvida, criado, para o bem ou para o mal, um IVA “à brasileira”, temos aqui uma valiosa oportunidade de futurologia: analisar a jurisprudência estrangeira sobre o tema e/ou revisitar a jurisprudência já consolidada sobre os tributos que foram extintos.
Refletindo sobre esse assunto, relembrei a discussão sobre se o IPVA deveria abranger todos os veículos automotores, incluindo embarcações e aeronaves (caso do RE 379.572). Nesse julgamento, prevaleceu o entendimento de que o IPVA seria um “substitutivo da velha taxa rodoviária única” (Min. Sepúlveda Pertence) e, por essa razão, deveria preservar a “fôrma” daquele tributo. Essa decisão tem sido amplamente criticada por ter resultado em uma das muitas disparidades tributárias: o jatinho dos ricos não é tributado, enquanto a motocicleta dos pobres é.
O objetivo aqui é examinar uma questão fundamental: até que ponto um tributo pode ser interpretado à luz do tributo que ele substituiu? Qual será o destino da jurisprudência, vinculante ou não, construída no âmbito do ISSQN, IPI, ICMS, PIS e Cofins? O conceito de “operação” para fins de ICMS é equivalente ao de “operação” para fins de IBS ou CBS? Deve-se considerar o desenho integral do tributo ao interpretar suas partes, mesmo quando essa lógica não está expressamente prevista em dispositivo legal, mas é intrínseca à estrutura do tributo?
Por exemplo, a onerosidade, antes considerada um elemento essencial para a incidência dos tributos sobre o consumo, é reenquadrada no âmbito do IBS e da CBS que abrangem determinadas operações não onerosas (art. 4º, 5º, § 1º). Esses tributos também rompem com o conceito mercantil que norteava o ICMS, permitindo a incidência, inclusive, sobre a transferência de bens não circulantes e no exercício de atividades econômicas não habituais. Essa previsão reflete a lógica econômica subjacente a esses tributos, que vai além do conteúdo tradicionalmente delimitado pelo direito civil ou empresarial.
Na minha visão, o Brasil está gradualmente abandonando a abordagem tributária estritamente formalista, centrada na interpretação literal das normas, e caminhando para um modelo mais alinhado à lógica econômica.
Nesse contexto, a compreensão do sistema tributário dependerá de uma análise focada na geração de valor ao longo da cadeia produtiva, o que resulta em uma base tributável significativamente mais ampla, aliada a uma proteção mais precisa do mecanismo de débito-crédito. Essas características representam aspectos fundamentais da neutralidade que norteia o IVA, já delineados no art. 2º da Lei Complementar – um elemento estrutural da nova tributação sobre o consumo. Por isso, torna-se indispensável adotar uma perspectiva crítica ao importar jurisprudência de tributos extintos, mesmo quando esta interpreta dispositivos semelhantes ou quase idênticos.
Por um lado, será imprescindível revisitar cuidadosamente as fontes anteriores sobre a tributação do consumo. Por outro, é natural a curiosidade sobre como outros países enfrentaram os desafios de seus respectivos IVAs e os conflitos que surgiram, especialmente em relação a dispositivos semelhantes ou expressões de natureza equivalente.
Um exemplo disso é a definição de sujeição passiva presente na LC nº 214/2025 (artigo 21, inciso I, letras a, b, c) e na Diretiva IVA da União Europeia (artigo 9º, item 1).
Segundo a LC 214, é contribuinte do IBS e da CBS o fornecedor que realizar operações no desenvolvimento de atividade econômica; de modo habitual ou em volume que caracterize atividade econômica; ou de forma profissional, ainda que a profissão não seja regulamentada.
Conforme a Diretiva da UE, entende-se por sujeito passivo qualquer pessoa que exerça, de modo independente e em qualquer lugar, uma atividade econômica, seja qual for o fim ou o resultado dessa atividade. E entende-se por atividade econômica qualquer atividade de produção, de comercialização ou de prestação de serviços, incluindo as atividades extrativas, agrícolas e as das profissões liberais ou equiparadas. É em especial considerada atividade econômica a exploração de um bem corpóreo ou incorpóreo com o fim de auferir receitas com caráter de permanência.
O fato de o artigo 21 da lei brasileira não apresentar uma definição explícita de atividade econômica é compensado por outros dispositivos da lei complementar, como os artigos. 4º e 6º, que, em conjunto, delimitam o âmbito de incidência do IBS e da CBS.
Por outro lado, o artigo correspondente na legislação europeia inicia, de certa forma, reiterando o “âmbito de incidência” do IVA, mas termina com um elemento aberto que pode oferecer insights para a definição de situações limítrofes. A expressão “com o fim de auferir receitas com caráter de permanência” pode ser vista como a versão estrangeira de “modo habitual ou volume”, mas também pode ir além: sugere que quem exerce atividade econômica possui a “intenção” de gerar receitas permanentes. Essa lógica se aplica tanto lá quanto cá?
É evidente que normas ou jurisprudência estrangeira não podem ser utilizadas como fonte direta do direito brasileiro. Contudo, esse tipo de comparação oferece uma perspectiva diferente, permitindo observar aspectos que talvez passem despercebidos, especialmente porque ainda estamos imersos na estrutura dos tributos que gradualmente serão extintos. Além disso, ela possibilita antecipar discussões potenciais e futuras.
Um exemplo relevante é o caso Heerma, julgado pela Corte de Justiça da União Europeia, no qual se discutiu se o arrendamento de uma propriedade imóvel pertencente a um sócio, realizado em favor da sociedade da qual ele faz parte, poderia caracterizar o sócio como sujeito passivo, configurando essa operação como uma atividade econômica exercida de forma independente.
No caso, entendeu-se que, quando uma pessoa tem como única atividade econômica a locação de um bem corpóreo para a sociedade civil da qual é sócia, essa locação pode ser considerada como realizada de forma independente, atendendo a um elemento necessário para a incidência do IVA. Embora a atividade imobiliária receba um tratamento específico, o caso traz uma possibilidade interpretativa interessante: um novo olhar sobre a relação entre sócios e sociedades.
Este é apenas um exemplo dentro de um contexto maior. Diante do texto aberto característico da lógica econômica do IVA, combinado com as adaptações e peculiaridades do sistema brasileiro, fica à disposição dos “videntes” uma espécie de bola de cristal: a jurisprudência europeia. Ela está disponível on-line, acessível e traduzida para o português — para quem quiser ler. Ou sofrer.
Fonte: Valor Econômico.