Recente julgamento da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça[1] entendeu ser possível a penhora de quotas de EIRELI transformada em sociedade unipessoal, nos termos da seguinte ementa, aqui reproduzida em seus trechos principais:
“(…) 5. Com o advento das Leis n. 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), 14.195/2021 (Lei do Ambiente de Negócios) e 14.382/2022, as Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada foram automaticamente transformadas em sociedades limitadas unipessoais, independentemente de alteração em seus atos constitutivos (ex lege), e os dispositivos que as regulamentavam (art. 44, VI, e art. 980-A do Código Civil) foram expressamente revogados.
5.1. É juridicamente possível a penhora da participação societária na Sociedade Limitada Unipessoal (antiga EIRELI) para satisfação de dívidas particulares do sócio único, independentemente de o capital social estar dividido em quotas sociais, respeitando-se a unipessoalidade societária e mantendo-se o caráter subsidiário dessa modalidade de constrição.
1. Dispositivo e tese (…)
Tese de julgamento: “1. É possível a penhora da participação societária do devedor sócio da Sociedade Limitada Unipessoal (antiga EIRELI) para satisfação de crédito”.
Ao assim decidir, a 4ª Turma confirmou entendimento que já havia sido manifestado pela 3ª Turma, no sentido de que “é possível a penhora, no todo ou em parte, da participação societária do devedor sócio de sociedade limitada unipessoal (independentemente de o capital social estar dividido ou não em quotas) para o adimplemento de seus credores particulares, mediante a liquidação parcial, com a correspondente redução do capital social, ou total da sociedade (arts. 1.026 e 1.031 do CC e 861 a 865 do CPC/2015), desde que mantida a unipessoalidade societária constante do respectivo ato constitutivo e a subsidiariedade dessa espécie de penhora disposta nos arts. 835, IX, e 865 do CPC/2015”.[2]
Naquela oportunidade, já havia asseverado a 3ª. Turma que “a coexistência da penhora de quotas sociais (isto é, da participação societária do sócio da sociedade unipessoal) e da desconsideração inversa da personalidade jurídica afigura-se salutar ao procedimento executivo, pois apresenta meios alternativos – atendidos os respectivos pressupostos legais – de satisfação do direito do credor, que é o fim precípuo da execução positivado no art. 797 do CPC/2015″.
No recente julgamento da 4ª Turma, asseverou o voto do relator Antonio Carlos Ferreira que as quotas sociais “representam a fração da participação societária que pertence ao sócio, delimitando seus direitos e deveres em relação à sociedade”. Ainda segundo o relator, “na sociedade limitada unipessoal, ainda que possa parecer desnecessária a divisão do capital social em quotas, tal procedimento não encontra vedação legal, desde que todas as quotas estejam sob a titularidade do mesmo sócio”.
Assim, toda a controvérsia resumia-se a saber se seria possível aplicar às sociedades unipessoais o entendimento consolidado do STJ sobre a penhora de quotas sociais, uma vez que a jurisprudência é favorável a tal possibilidade, inclusive entendendo que restrições contratuais não constituem óbice.
Vale ressaltar que tal entendimento foi construído a partir da interpretação combinada entre o direito material e o direito processual, pois o Código de Processo Civil, especialmente em seus arts. 835, IX, e 861, também aponta para a mesma solução.
Para a 4ª Turma, não há razão que impeça a aplicação do mesmo entendimento às sociedades unipessoais. Logo, “reconhecida a viabilidade jurídica da penhora de quotas sociais na sociedade limitada unipessoal, admite-se a expropriação da participação societária do devedor, seja integral ou parcial, independentemente de o capital social estar dividido formalmente em quotas”.
Em outras palavras, o STJ entendeu que a inexistência de divisão formal em quotas não impediria a constrição, uma vez que esta poderia ser feita proporcionalmente ao valor do capital social que corresponde à dívida do sócio único. Segundo o relator, “essa medida constritiva permite a satisfação dos credores particulares do sócio único, respeitando a autonomia patrimonial da pessoa jurídica, mas reconhecendo que tais quotas integram o patrimônio pessoal do devedor e, portanto, constituem garantia de suas obrigações”.
Na decisão, a 4ª Turma é clara ao afirmar que, em nenhuma hipótese, a penhora implicará o ingresso do credor como sócio sem a anuência do sócio único, a exemplo do que ocorre com a penhora de quotas de outras sociedades. Destacou o relator que “ao optar pela unipessoalidade, o sócio manifestou sua affectio societatis vontade de não se associar para a consecução da atividade empresarial, e tal escolha deve ser respeitada, em consonância com o princípio constitucional da legalidade (art. 5º, II, da CF)”. Tal aspecto já havia sido ressaltado igualmente pela 3ª Turma no julgamento anterior.
Ponto interessante da decisão da 4ª Turma diz respeito às consequências da constrição, ocasião em que o tribunal deixou claro que haveria duas possibilidades sucessivas: “(i) liquidação parcial da sociedade, com a correspondente redução do capital social, nos termos dos arts. 861, III, do CPC e 1.031, § 1º, do Código Civil, preservando-se o prosseguimento da atividade empresarial sob a gestão do sócio original; ou, (ii) caso essa medida se mostre insuficiente ou prejudicial à viabilidade do empreendimento, admite-se, excepcionalmente, a constrição sobre a totalidade da participação societária, com a consequente alienação da sociedade em sua integralidade, solução que, embora mais gravosa, harmoniza-se com o princípio da preservação da empresa ao manter a unidade produtiva e evitar o fracionamento que poderia comprometer sua existência econômica”.
A questão já havia sido apreciada igualmente pela 3ª Turma, como se verifica pelo voto do relator ministro Bellizze:
“Constatada a possibilidade de penhora dessas quotas e procedendo-se ao ato constritivo, abrem-se as seguintes possibilidades, em ordem subsecutiva de gradação: i) aquisição dessas quotas pelos sócios, observado o direito de preferência legal ou contratual (art. 861, II, do CPC/2015); ii) aquisição pela sociedade, sem redução do capital social e com utilização de reservas, para manutenção em tesouraria
(art. 861, § 1º, do CPC/2015); ou iii) adjudicação ao exequente, ou alienação judicial, podendo o adjudicante ou arrematante integrar o quadro societário, desde que inexista vedação expressa no respectivo ato constitutivo nem haja oposição de titulares de mais de um quarto do capital social, ocasião em que se deverá, necessariamente, proceder à liquidação parcial da sociedade (ou total), com a correspondente redução do capital social (arts. 861, III, do CPC/2015; e 1.031, § 1º, do CC).
Não obstante tais procedimentos se refiram, em regra, ao ente empresarial composto por uma pluralidade de sócios, também se afigura possível a sua aplicação, no que couber, relativamente à sociedade limitada unipessoal, devendo a penhora recair sobre a parcela da participação societária do devedor sócio único (esteja o capital social dividido ou não em quotas), impondo-se a liquidação da sociedade na medida necessária ao adimplemento do débito exequendo, com a correspondente redução do capital social (art. 1.031, § 1º, do CC), salvo na liquidação total, desde que isso não impeça a continuidade da atividade empresarial pelo sócio devedor nem acarrete a entrada de um terceiro no quadro da sociedade unipessoal, por incompatibilidade lógica, haja vista a vontade do sócio externada no respectivo contrato social de não se associar para a consecução da atividade empresarial.
(…)
Caso a expropriação de fração da participação societária do devedor inviabilize a continuidade da atividade empresarial pelo primitivo sócio único, deve-se efetuar a penhora da totalidade do direito, procedendo-se à alienação da própria sociedade considerada em seu conjunto, em atendimento ao princípio da preservação da empresa.
Cumpre ressaltar que a determinação judicial dessa penhora pressupõe a análise articulada pelo julgador do interesse do credor – que, nos termos da lei, é o critério norteador do feito executivo (art. 797 do CPC/2015); do princípio da menor onerosidade da execução para o devedor (art. 805 do CPC/2015); e do princípio da preservação da empresa, notadamente pelas funções social e econômica inerentes à atividade empresarial”.
Como se pode observar, a preocupação com a manutenção da empresa já estava presente na decisão da 3ª Turma, tendo sido reiterada na recente decisão da 4ª Turma. Consequentemente, a alternativa da alienação da totalidade da participação societária do sócio único foi apontada como a solução adequada sempre que o ato de constrição impedir a continuidade da atividade empresarial pelo sócio único em razão da diminuição excessiva do patrimônio social decorrente da liquidação parcial da quota.
Trata-se, assim, de mais um assunto do Direito Societário em que o STJ prestigiou o princípio da manutenção da empresa, adotando-o como pedra de toque para a necessária solução do conflito entre o sócio único e o seu credor. Com isso, o tribunal deixou claro que considera legítima a proteção do sócio único, inclusive resguardando o direito deste de não se associar com quem não queira, desde que tal solução seja compatível com a necessária preservação da empresa.
Fonte: JOTA.
