A União terminou o dia de ontem com bilhões de reais a receber de empresas brasileiras. O motivo de todo esse dinheiro está em um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF). Os ministros permitiram a “quebra” de decisões judiciais definitivas — que autorizavam o não pagamento de tributos.
Com esse resultado, a Receita Federal terá passe livre para cobrar valores daqui para frente e também o que, por força de decisão definitiva, deixou de ser pago pelos contribuintes no passado.
A Samarco, empresa de mineração, por exemplo, pode ter que pagar, sozinha, uma conta de R$ 6 bilhões. A Vale, outra que pode ser atingida por essa decisão, tem cerca de R$ 1 bilhão em discussão.
Advogados dizem não ser possível ainda calcular o tamanho de toda essa conta porque as empresas que têm decisões definitivas a seu favor não costumam fazer provisão nem registrar em balanço o impacto “reverso”. “Estamos vivendo uma situação inédita”, diz um especialista ouvido pelo Valor.
Ficou definido, na sessão plenária de ontem, que as decisões definitivas deixarão de ter efeito sempre que houver um julgamento posterior do STF em sentido contrário — em repercussão geral ou em sede de controle concentrado de constitucionalidade (ADI, por exemplo).
Significa que o contribuinte que discutiu a cobrança de um tributo e teve a ação encerrada a seu favor — autorizando a deixar de pagar — perderá esse direito se, tempos depois, a Corte julgar o tema e decidir que a cobrança é devida.
A decisão definitiva, portanto, deixa de ter efeitos e o contribuinte passa, da decisão do STF em diante, a ter que pagar o tributo. Essa sistemática muda o formato que se tem atualmente.
Até ontem, a “quebra” não ocorria de forma automática. O Fisco podia pleitear a reversão de decisões, mas por meio de um instrumento específico, a chamada ação rescisória — que tem prazo de até dois anos para ser utilizada e pode ou não ser aceita pelo Judiciário.
Os ministros ocuparam três sessões com esse tema. A conclusão pela “quebra”, ontem, foi unânime. Eles entendem que a manutenção das decisões individuais após os julgamentos vinculantes da Corte — que valem para todos os contribuintes — promove injustiça tributária, em afronta aos princípios da isonomia e da livre concorrência.
Houve divergência, no entanto, em relação aos desdobramentos da “quebra”. Um deles, o momento exato em que a decisão definitiva perderá a validade.
Ficou definido, por maioria de votos, que terão de ser respeitados os princípios da anterioridade nonagesimal (90 dias após a decisão) e anual (ano seguinte à decisão). Esse prazo começa a ser contado a partir da decisão que for proferida pela Corte em cada um dos casos.
A outra opção, que não foi para frente, era para que a “quebra” ocorresse imediatamente após a decisão do STF. Três ministros se posicionaram dessa forma: Gilmar Mendes, Dias Toffoli e André Mendonça.
Também por maioria de votos, os ministros decidiram não aplicar a chamada modulação de efeitos. Essa é uma das principais preocupações dos contribuintes nesse julgamento. É o que permite ao Fisco cobrar os tributos que não foram pagos pelos contribuintes no passado, com correção e multa.
Os casos em discussão, por exemplo, envolvem cobranças de CSLL. Com a modulação de efeitos, a Receita Federal poderia exigir o tributo somente daqui para frente. Sem a modulação, no entanto, as cobranças são possíveis desde o ano de 2007, a data em que o STF decidiu pela constitucionalidade do tributo.
Para quem nunca foi cobrado — desde que tem a decisão até os dias de hoje — a cobrança pode retroagir somente cinco anos. Ou seja, o Fisco só poderá exigir os valores que não foram pagos de 2018 para cá. Mas se o Fisco vem cobrando o contribuinte desde lá trás, a cobrança poderá ser validada desde lá.
A conta a ser paga pelas empresas, em razão disso, pode ficar muito pesada. A CSLL incide sobre o lucro — tem alíquota de 9%. O acumulado, desde lá de trás, acrescido de correção e multa, atinge valores altíssimos.
A Samarco, por exemplo, afirma em seu balanço que tem decisão definitiva, considerando inconstitucional a cobrança de CSLL, e, por esse motivo, não recolhe a contribuição. Informa, no entanto, que vem sendo autuada pela Receita Federal desde 2007.
Consta no balanço que as cobranças — que somam R$ 6 bilhões — estão sendo discutidas o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) ou se encontram suspensas por decisão judicial. A Samarco foi procurada pela reportagem e informou que não iria comentar.
Braskem e Grupo Pão de Açúcar também estão entre as empresas que obtiveram decisões definitivas da Justiça contra o pagamento de CSLL. Não há informações, no entanto, se passaram a recolher o tributo depois de 2007, nem se tem dinheiro a perder com a decisão tomada ontem pelos ministros do STF.
Existem outros casos antigos — com muito dinheiro envolvido — que também serão afetados. Advogados têm mapeados, pelo menos, quatro: dedução da CSLL do Imposto de Renda, IPI na revenda de mercadorias importadas, contribuição patronal sobre o terço de férias e a exigência de Cofins para as sociedades uniprofissional.
Aqui, nesse grupo, a Vale pode ser atingida. A companhia informa, em seu balanço, que tem decisão judicial definitiva desde 2004 permitindo deduzir do IRPJ os valores pagos a título de CSLL. Afirma, porém, que desde 2018 decidiu, por conta própria, não fazer mais essas deduções.
Mas a decisão do STF, proibindo essas deduções, é de 2013 e a empresa foi autuada.
A Receita Federal cobra valores referentes aos anos de 2016 e 2017. Esse caso está
em discussão no Carf.
No balanço da companhia consta impacto de R$ 2,36 bilhões. Ao Valor, no entanto, a Vale informou que esse valor já foi reduzido na esfera administrativa para R$ 802 milhões . E ontem, após o julgamento, disse ser “necessário aguardar a publicação da decisão para avaliação precisa de impactos”.
A decisão de não modular os efeitos da decisão que permitiu a “quebra” de decisões judiciais definitivas se deu por um placar apertado: 6 a 5. O ministro Dias Toffoli, que
havia votado contra a modulação na semana passada, mudou de posição ontem.
Luiz Fux, que já havia votado na semana passada, pediu a palavra na sessão de ontem e falou por um longo tempo sobre as possíveis consequências da decisão. “Me impressiona que o STF, guardião da constituição, tenha relegado a um segundo plano a coisa julgada”, disse. “Temos que ter em mente as consequências jurídicas das nossas decisões, o abalo que se cria ao risco Brasil.”
Para advogados, a decisão do STF é “impactante” e traz “enorme insegurança jurídica”. “O ambiente de incerteza e os desdobramentos levarão anos para ser conhecidos”, diz Priscila Faricelli, do Demarest.
Em nota, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) informa que “não há como calcular, a priori, o impacto econômico do julgamento” e que “não há surpresa quanto à obrigação de todos os contribuintes receberem o mesmo tratamento”.
Fonte: Valor Econômico