O Vasco da Gama ingressou com um pedido de recuperação judicial conjunto do clube e da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) na 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Rio de Janeiro. No pedido, o clube apontou que, em 2023, em conjunto com a SAF, acumulou dívidas de R$ 696 milhões, enquanto a receita alcançou apenas R$ 318 milhões.
Pelo menos outros 14 times de futebol já tinham buscado a recuperação judicial para reestruturar suas dívidas, segundo levantamento feito com exclusividade para o Valor pelos escritórios Mubarak Advogados Associados e TPB Advogados sobre a aplicação da Lei nº 14.193/2021 e divulgado em janeiro. E já havia notícias de que o Vasco vinha se movimentando para formular o pedido de recuperação para reestruturar as dívidas.
O pedido, no entanto, chama a atenção por ter sido o primeiro a envolver uma SAF. A Lei da SAF foi promulgada para oferecer aos times um instrumento para lidar com seu endividamento crônico, ao permitir a criação de uma nova empresa, “limpa” e sem dívidas, para facilitar a captação de recursos no mercado, sob a condição de direcionar parte do dinheiro novo para a quitação das dívidas dos clubes.
A possibilidade de pedido de recuperação, tanto do clube quanto da SAF, está amparada por lei, segundo explica Joana Bontempo, head da área de recuperação judicial do CSMV Advogados.
Por um lado, a Lei da SAF permite que o clube entre com pedido de recuperação judicial. Já a SAF, por ser uma sociedade empresária, pode requerer a recuperação com base na própria Lei de Falências e Recuperação de Empresas. “Em ambos os casos, é necessário atender a diversos requisitos, incluindo a comprovação do exercício regular da atividade por pelo menos dois anos”, afirma Bontempo.
Foi justamente devido ao aumento da dívida que o Vasco tinha instituído a SAF em 2022, e alienado 70% das ações para um grupo sediado em Miami, o 777 Partners. O problema é que a alienação não rendeu os resultados esperados, e as dívidas só aumentaram, segundo o clube.
O pedido de recuperação judicial foi protocolado no mesmo processo em que o Vasco vem brigando com o 777 Carioca, braço brasileiro do grupo norte-americano (processo nº 0943414-78.2024.8.19.0001). Em maio de 2024, o clube conseguiu uma decisão liminar na 4ª Vara Empresarial suspendendo os direitos societários da empresa norte-americana.
A 777 Carioca alega, por sua vez, que a liminar atropelou o cumprimento do contrato entre ela e a SAF, uma vez que o clube a obteve com base na possibilidade de inadimplência de uma parcela que só venceria dali a quatro meses.
Essas complicações ficam acentuadas pelo fato de que a recuperação está envolvendo a SAF. Na própria petição, o clube informa que o acordo com a 777 “transferiu a titularidade de dívidas do Clube de Regatas Vasco da Gama (CRVG) para o Vasco SAF, inclusive com reflexos contábeis”.
Segundo Felipe Carregal Sztajnbok, vice-presidente jurídico do Vasco, o contrato de investimento e acordo de acionistas fechados com a 777 na gestão anterior fizeram com que a SAF do Vasco já “nascesse devendo R$ 700 milhões, o que não aconteceu com o Cruzeiro ou com o Botafogo, por exemplo”.
“A documentação trocada à época foi muito confusa, mas não podemos deixar de considerar que existiu um contrato através do qual a SAF herdou grande parte as dívidas do clube”, explica ele, o que motivou o pedido de consolidação substancial entre as duas empresas.
Para Rafael Coelho, sócio da área de insolvência do Paschoini Advogados, esse é o aspecto que mais chama a atenção no pedido. “Isso decorre da SAF frustrada que foi o Vasco, que ficou em situação complicada, porque não consegue fazer uma nova venda, e ficou com o cenário bastante delicado”, avalia.
O imbróglio com a 777 está sendo debatido separadamente na via arbitral, segundo o vice-presidente jurídico do clube. “Na arbitragem, na qual será decidido o mérito, discute-se o inadimplemento do contrato, gestão temerária por parte da 777 e eventual indenização a favor do Vasco por prejuízos causados pela 777 ao Vasco SAF”, explica.
É possível, afirma, que em algum momento as discussões se encontrem, se a 777 for considerada credora do Vasco. “Mas do ponto de vista do clube, o Vasco é que é credor da 777”, afirma Felipe Carregal Sztajnbok.
No pedido de recuperação, o clube aponta que, embora tenha aportado R$ 310 milhões na SAF, desde que a 777 assumiu a gestão, a dívida do clube também aumentou R$ 350 milhões.
Para tentar lidar com o passivo, a gestão anterior do Vasco optou pelo Regime Centralizado de Execuções (RCE) Trabalhistas e Cíveis, que indexa o valor da dívida à taxa Selic. O problema é que a taxa deve alcançar 15% nos próximos meses, segundo projeções do boletim Focus, o que tornaria a dívida impagável, segundo a inicial.
Esses RCEs, no entanto, não devem interferir no processo, uma vez que serão absorvidos pelo plano de recuperação, conforme explicam Sergio Coelho, sócio do Coelho, Murgel, Atherino Advogados, e Luiz Roberto Ayoub, sócio do Galdino, Pimenta, Takemi, Ayoub, Salgueiro, Rezende de Almeida Advogados.
Diante de todas essas peculiaridades, o Vasco se resguardou ao conseguir autorização judicial para levar a cabo um processo de mediação, suspendendo as execuções e penhoras durante a negociação com os credores, conta Felipe Carregal Sztajnbok.
“O Vasco já entra nessa fase judicial da restruturação com o plano aprovado pela maioria dos credores da Classe 1, o que uma grande vantagem, considerando a relevância dessa classe”, afirma ele, em referência aos credores trabalhistas, que têm prioridade de pagamento nas recuperações judiciais.
“Esse êxito traz agilidade e credibilidade ao processo de reestruturação como um todo, já que, segundo os próprios credores, foi a primeira vez que viram uma iniciativa efetiva e real do Vasco para pagar essa dívida de forma definitiva”, conta.
A defesa, a cargo de quatro escritórios diferentes, também informou à Justiça que o clube vem buscando alternativas para estancar a sangria, como redução de custos operacionais e revisão de campanhas publicitárias. A receita do clube também aumentou com a contratação de Philippe Coutinho, que motivou uma campanha de associação em massa que levou o número de sócios de 32 mil para 70 mil.
As medidas, no entanto, não serão suficientes sem a intervenção judicial que dê sustentação ao plano de renegociação de dívidas do clube. Por isso, em liminar, o Vasco pede que a Justiça impeça o corte de fornecimento de serviços essenciais, como água, luz e internet; que vete o acionamento de cláusula de vencimento antecipado em virtude do pedido de recuperação, um instrumento previsto em contrato que permite que empresas credores antecipem a cobrança das dívidas; além de autorização para pagar os créditos relativos ao valor das luvas e de premiações por performance ou resultado dos atletas do atual elenco masculino profissional, por fora do stay period.
A última medida é particularmente importante porque, apesar de não compor o salário oficial, esse tipo de pagamento faz parte da remuneração dos jogadores. Segundo a petição, “os atletas profissionais devem ser vistos como um fornecedor de serviços para a manutenção das atividades de um clube”, o que faz com que a continuidade dos pagamentos garanta “o funcionamento e a sustentabilidade da agremiação”.
No mérito, o Vasco pede que a consolidação entre o clube e a SAF; o reconhecimento do pedido de recuperação, com consequente congelamento das cobranças, a partir da interposição do pedido, para evitar constrições e penhoras que possam ocorrer até o processamento; e a nomeação de um administrador judicial, que vai supervisionar o processo.
Segundo a defesa do clube, a “expectativa é reestruturar uma dívida histórica do Vasco, colocando essa grande instituição em um patamar compatível com seu nome, com a atração de novos investidores”.
Fonte: Valor Econômico.
