Verdade real e os crimes tributários

Por Leandro Sarcedo e Daniel Allan Burg

Com a aprovação da Súmula Vinculante nº 24, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), ficou definido que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137, de 1990, antes do lançamento definitivo do tributo”. Estabeleceu-se o entendimento de que, com relação aos chamados delitos contra a ordem tributária, não há como se iniciar a persecução penal antes de terminado o procedimento administrativo fiscal.

Em vista disso, é possível afirmar que o lançamento definitivo do crédito tributário, realizado após regular procedimento administrativo-fiscal, funciona como uma espécie de exame preliminar de corpo delito, pois é nesse momento que se verificam os indícios de materialidade da infração, ou seja, a existência ou não de tributo suprimido e, em caso positivo, o seu quantum. Num grosseiro paralelo, funcionaria como o laudo de constatação nos crimes de tóxicos.

Constituindo-se o trânsito em julgado do processo administrativo-fiscal e o lançamento definitivo do crédito tributário pela administração em elemento indiciário da materialidade do delito suficiente para o recebimento da denúncia pelo magistrado, não quer isso dizer que possam tais elementos servir como prova impassível de questionamento durante o contraditório processual, já que não raras vezes a autuação tributária utiliza-se de presunções para suprir as lacunas dos fatos que não pôde ou não quis investigar.

Imagine, por exemplo, um contribuinte que teve a sua declaração de Imposto de Renda retida na malha fina em razão de abatimentos decorrentes de gastos médicos declarados e considerados suspeitos pela Receita Federal. Depois de ter sido intimado pelos auditores fiscais, ele deixa, por qualquer razão, de apresentar os recibos médicos que lhe estão sendo exigidos e, por esse motivo, tem contra si lavrado um auto de infração porque se presumiu que a sua declaração de gastos era inidônea.

Denunciado criminalmente pelo Ministério Público Federal, com base no auto de infração e imposição de multa lavrado, o contribuinte, quando vem defender-se perante o juízo penal, apresenta os recibos médicos, bem como arrola, como testemunhas, os profissionais de saúde que firmaram tais recibos, que atestam a sua veracidade e confirmam a prestação dos serviços, assim como comprovam que, inclusive, declararam os recebimentos dos respectivos valores à Receita Federal.

Diante desses fatos, como deve agir o advogado para demonstrar ao julgador que ele não deve escravizar-se pelo lançamento definitivo do crédito tributário, mas sim absolver o contribuinte da acusação que lhe é imputada?

Nas hipóteses de delitos contra a ordem tributária, um dos motivos para convencer o magistrado criminal a não ficar preso ao lançamento administrativo-tributário, ainda que definitivo, é o fato de que a presunção de legitimidade desse ato é juris tantum, ou seja, deve-se presumi-la verdadeira somente até o momento em que prova contraria venha desconstituí-la.

Além disso, enquanto nas outras searas do direito é facultado ao juiz contentar-se com a verdade formal ou convencional que decorra das manifestações das partes, o princípio reitor do processo penal é o da verdade real/material dos fatos, sem a qual não será possível nem admissível ao juiz obter a necessária certeza sobre as provas que são submetidas à sua apreciação.

Não se trata de convencer o julgador a desconstituir o auto de infração e imposição de multa, o que seria incabível no juízo penal, mas sim de demonstrar a ele de que nem sempre a manifestação da autoridade tributária a respeito da existência, ou não, do tributo, corresponde à realidade fática dos acontecimentos, única a importar para o direito processual penal.

Diante desses argumentos, parece claro que a sentença penal não deve funcionar como uma mera decisão homologatória do auto de infração lavrado pela autoridade tributária, cabendo ao magistrado penal, para que isso não ocorra, a difícil tarefa de apreciar minuciosamente como os fatos ocorreram, para depois dar-lhes a roupagem jurídica correta.

Leandro Sarcedo e Daniel Allan Burg são, respectivamente sócio e advogado do Escritório Massud e Sarcedo Advogados Associados

Fonte: Valor Econômico

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