Sepultada no começo do ano passado pelo Superior Tribunal de Justiça, a tese do prazo de dez anos para os fiscos cobrarem os tributos lançados por homologação ameaça ser ressuscitada. Mesmo com a consolidação, em março de 2008, do entendimento dos ministros quanto ao prazo máximo de cinco anos, uma decisão da 2ª Turma novamente desafia os contribuintes ao conjugar artigos do Código Tributário Nacional e estender o prazo decadencial. O acórdão já está em estudo pela Fazenda paulista, que pode alterar todo o seu sistema de inscrição de débitos em dívida ativa, caso outras decisões sigam o mesmo caminho.
A decisão que ressuscitou a discussão foi dada pela 2ª Turma do STJ em maio, sob a relatoria do ministro Humberto Martins — clique aqui para ler o voto. Por unanimidade, os ministros confirmaram que o direito de a Fazenda cobrar débitos atrasados expira só em dez anos a partir da data do fato gerador do tributo. “A jurisprudência desta corte pacificou o entendimento de que, no caso de tributo lançado por homologação, em que não houve pagamento antecipado, o prazo decadencial é contado cinco anos após o fato gerador, mais cinco anos depois dessa data”, cravou a ementa do acórdão. O ministro considerou que, já que a jurisprudência da corte era de que, quando há pagamento antecipado, o prazo é de cinco anos, quando não há, os prazos de constituição do débito e prescrição deveriam ser somados. Portanto, cinco mais cinco anos.
Até então, no entanto, a jurisprudência dizia exatamente o contrário do que decidido pela 2ª Turma, que teria misturado entendimentos diversos para chegar a essa conclusão. Dois meses antes, a 1ª Seção do tribunal — que inclui a 1ª e a 2ª Turmas — resolveu a questão no sentido oposto. “O prazo para a constituição de crédito de tributo sujeito a lançamento por homologação, na hipótese em que não há pagamento da dívida, é de cinco anos, contados do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, nos termos do artigo 173, inciso I, do Código Tributário Nacional”, disse a ministra Denise Arruda ao votar em recurso de sua relatoria, citando acórdão da 1ª Turma — clique aqui para acessar. Com base no entendimento, a 1ª Seção então negou um recurso da Fazenda paulista, com base na Súmula 168 da corte: “Não cabem embargos de divergência quando a jurisprudência do tribunal se firmou no mesmo sentido do acórdão embargado”.
A desavença envolve dois tipos de interpretação do Código Tributário Nacional. A do fisco é que os artigos 150, parágrafo 4º, e 173, inciso I, devem ser aplicados em conjunto. Isso quer dizer que as fazendas teriam cinco anos para homologar as declarações enviadas pelos devedores (artigo 150, parágrafo 4º) e outros cinco para constituir e cobrar os créditos (artigo 173, inciso I). Já os contribuintes entendem que as regras são excludentes. O artigo 150 só se aplicaria a tributos cuja apuração e pagamento são de responsabilidade das empresas — os chamados “lançados por homologação”. Nos demais — os que a Fazenda diz qual o valor a ser pago, como o IPTU — é o artigo 173 que dá ao fisco o direito de cobrar. Em cada uma das duas situações, o fisco tem cinco anos para tomar as medidas.
Embora a decisão contrária às empresas seja de um colegiado inferior ao que as favoreceu, já animou o fisco a manter a briga na Justiça. “O acórdão foi encaminhado ao centro de estudos da Procuradoria-Geral do Estado para ser divulgado a todos os procuradores paulistas”, afirma Eduardo José Fagundes, subprocurador-geral na área de contencioso tributário do estado de São Paulo. Por enquanto, a novidade será usada como embasamento nas peças processuais preparadas pelo órgão, mas pode causar um impacto muito maior. As inscrições de débitos em dívida ativa no estado são feitas por meio de um sistema que descarta dívidas que não foram constituídas em até cinco anos. A regra tecnológica foi implantada em 2007 pela PGE, com base na decisão da 1ª Seção. “Mas se a discussão for reaberta, teremos que adaptar o sistema”, diz Fagundes.
Para que ocorresse a mudança, no entanto, a briga teria que chegar novamente à 1ª Seção, por meio de Embargos de Divergência — recurso apresentado quando decisões contrárias são dadas por diferentes colegiados da mesma corte. Só a 2ª Turma já teve duas posições diversas. Em 2005, a mesma 2ª Turma votara em favor do limite de cinco anos, no Recurso Especial 575.991. Além disso, a 1ª Turma também já decidiu pelos cinco anos em 2004, no Agravo Regimental no Recurso Especial 949.060. As diferentes direções já justificariam a provocação do caso à 1ª Seção, que teria de reanalisar os argumentos.
Mas a maior interessada em fazer isso — a indústria de produtos químicos Carboquímica, perdedora no julgamento feito em maio pela 2ª Turma — decidiu não recorrer. Segundo a advogada que defendia a empresa, Suria Helena Bertin, a briga terminou quando a indústria fechou as portas.
Na Fazenda estadual do Rio de Janeiro, a decisão da 2ª Turma ainda é vista com desconfiança. “O acórdão é uma decisão isolada, que contraria entendimento firmado na 1ª Seção e na própria 2ª Turma e poderia ter sido objeto de Embargos de Divergência na 1ª Seção, onde certamente seria reformada”, afirma a procuradora-geral do estado, Lúcia Léa Guimarães. Segundo ela, os próprios precedentes citados pelos ministros para embasar sua decisão firmaram posição contrária à decadência em dez anos. Ela cita ainda outras três decisões da 1ª Turma que ratificam a tese dos contribuintes — os Recursos Especiais 739.694, 678.454 e 894.453, todos julgados em 2007.
A posição pelo prazo quinquenal já foi tão assimilada pela Fazenda fluminense que a Procuradoria chegou a emitir um parecer se resignando sobre o assunto — clique aqui para ler. O documento dá “nova orientação à Fazenda estadual para que observe o prazo de cinco anos para o lançamento”, diz a procuradora-geral do Rio. A iniciativa do órgão atendeu a um pedido do próprio fisco, para que o Conselho de Contribuintes do Estado e a PGE revissem sua posição em favor da tese dos dez anos, devido à jurisprudência do STJ. “Por ocasião do parecer, foi feita uma pesquisa no Superior Tribunal Justica, que comprovou a pacificação do assunto tanto na 1ª Seção como na 1ª e 2ª Turmas, havendo apenas um precedente da 2ª Turma pela aplicação do prazo decenal”, explica a procuradora-geral.
Para o tributarista Maurício Faro, do escritório Barbosa, Müssnich & Aragão Advogados, o ressurgimento da questão se deve à falta de uma decisão definitiva do STJ, que poderia vir por meio da aplicação da Lei de Recursos Repetivos (Lei 11.672/08). As decisões dadas em recursos analisados com base na norma são automaticamente aplicadas a todas as demandas sobre a mesma matéria na corte. “A Súmula Vinculante 8, do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já considerou inconstitucional a decadência de contribuições previdenciárias em dez anos”, compara. Ele alerta que o acórdão da 2ª Turma, que contraria a jurisprudência do STJ, pode ter efeito pedagógico sobre os magistrados. “Os advogados devem ficar atentos”, adverte.
Fonte: Conjur