Uma oportunidade suprema

Por Fábio Martins Andrade

A questão tributária de maior complexidade e enorme relevância que hoje tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) refere-se ao pronunciamento definitivo que se aguarda acerca da sistemática brasileira de tributação dos lucros no exterior promovida pelo artigo 74 da Medida Provisória (MP) 2.158-35/01, especialmente à luz das variadas implicações e dos profundos impactos que reverberarão a partir de tal conclusão.

O dispositivo em foco teve a sua constitucionalidade desafiada pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI) com o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 2.588), a qual aguarda o voto faltante do ministro Joaquim Barbosa. Levando em consideração que o caso voltou a frequentar a pauta do Pleno no dia 8 de março, é razoavelmente certo que o julgamento será concluído nas próximas sessões de julgamento. Outro indicativo que sinaliza nesse sentido é o fato de que foi incluído na mesma pauta o RE 541.090, de relatoria do mesmo ministro, versando sobre o mesmo tema, porém sob o enfoque específico da aplicação dos tratados para evitar a dupla tributação.

É precisamente nesse ponto que reside oportunidade ímpar para que o STF possa, a um só tempo, resolver tormentosa questão jurídica e livrar-se de alguns constrangimentos experimentados no julgamento da ADI 2.588. É também a ocasião para a Corte promover alguns temperamentos de modo a firmar a excepcionalidade de algumas situações fáticas concretas que são colocadas na realidade operacional das empresas brasileiras que se internacionalizaram nos últimos anos.

De fato, em 17 de agosto de 2011 delineou-se tendência majoritária da Corte no sentido de rejeitar a ADI 2.588, dando pela constitucionalidade da regra fiscal. Nesse sentido o voto-vista do ministro Britto bem como o do presidente, ministro Peluso, que, somados aos anteriormente proferidos (min. Rel. Ellen, e mins. Jobim e Eros Grau), alcançaram a maioria de cinco votos. No sentido contrário, votaram os ministros Marco Aurélio, Pertence, Lewandowski e Celso de Mello.

Ocorre que o transcurso de mais de uma década desde o ajuizamento da ADI 2.588 impôs alguns embaraços ao julgamento da questão. O primeiro refere-se ao impedimento do ministro Gilmar Mendes, sendo virtualmente possível verificar-se empate de cinco votos para cada lado, a exemplo do que ocorreu em casos recentes. Ademais, dos dez ministros votantes no caso, quatro já se aposentaram até agora, inclusive a relatora. Levando em conta a variedade dos argumentos que fundamentaram os votos que foram proferidos, poderá haver dificuldade na proclamação do resultado final do julgamento.

Em razão disso, a despeito da maioria que se formou na sessão de agosto do ano passado em relação à tributação das controladas no exterior, o ministro Celso de Mello suscitou naquela ocasião a possibilidade de que o STF viesse a definir o tema com o julgamento concomitante de um recurso extraordinário, em que se examinariam questões específicas não postas no âmbito da ADI 2.588, tais como as que envolvem a aplicação dos tratados.

De fato, de suma importância no caso é o cuidado que se deve ter ante as especificidades das situações fáticas, que refogem à formulação contida na petição inicial da ADI 2.588, inteiramente focada na alegação de inconstitucionalidade material do referido art. 74. Com efeito, no pleito em questão não se faz qualquer distinção entre as três situações concretas mais comuns de atuação internacionalizada das empresas brasileiras que podem se situar em: (i) paraíso fiscal ou regime fiscal privilegiado; (ii) país com tributação à alíquota “normal”; ou (iii) país com o qual o Brasil tenha firmado tratado para evitar a dupla tributação da renda.

O julgamento da ADI 2.588 sem atenção a tais especificidades pode resultar na aplicação do texto normativo atacado de modo indiscriminado às três situações, a despeito de o próprio STF já ter reconhecido seu caráter antielisivo.

Também, cabe à Suprema Corte compatibilizar o regime de tributação internacional com as demais normas que compõem o sistema tributário, especialmente o art. 43, parágrafo 2º, alínea “c”, do Decreto-Lei nº 5.844, de 1943, e o art. 70 da Lei nº 3.470, de 1958 ambos com guarida no art. 379, parágrafo 1º, do RIR (Decreto nº 3.000, de 1999), que estabelecem que os rendimentos de participações societárias “serão excluídos do lucro líquido, para efeito de determinar o lucro real, quando estiverem sujeitos à tributação nas firmas ou sociedades que os distribuíram” (sic art. 379, parágrafo 1º do RIR).

Diante desse cenário em que grassa a insegurança jurídica, o julgamento do RE 541.090 pode ter o condão de literalmente “separar o joio do trigo” reconhecendo a constitucionalidade da tributação imediata (art. 74 da MP nº 2.158-35/01) às situações em que a atuação da empresa brasileira se dá em países considerados paraísos fiscais ou regimes fiscais privilegiados, mas afastando a eficácia do dispositivo nas situações em que a empresa opere em países submetidos à incidência de alíquota “normal” ou em países que tivessem firmados tratados para evitar a dupla tributação com o Brasil.

Isso colocaria a atabalhoada legislação brasileira em alinhamento com a prática internacional de todos os países conhecidos do mundo civilizado, promovendo a aplicação de legislação que tem natureza antielisiva em conformidade com as circunstâncias prevalecentes em cada uma das três situações diferentes, em estrita compatibilização da sistemática brasileira de tributação internacional com a Constituição da República.

Com isso, os constrangimentos apontados anteriormente seriam superados, razão pela qual se impõe máxima atenção ao julgamento que se avizinha. Eis porque o STF está diante de uma oportunidade suprema.

Fábio Martins de Andrade é advogado em São Paulo, cotitular de Andrade Advogados Associados e doutor em direito público pela UERJ

Fonte: Valor Econômico

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