Assombrações tributárias

 

Ives Gandra Da Silva Martins e Everardo Maciel

Já temos suficientes problemas no sistema tributário brasileiro. Não podemos nos dar ao luxo de criar novos

ORTEGA Y Gasset, citado por Celso Cunha no discurso pronunciado quando de sua renúncia à condição de revisor gramatical do texto constitucional de 88, afirmava que “clareza é a cortesia do legislador para com o povo”.

Há décadas a prestação de serviços intelectuais é realizada por meio de pessoas jurídicas, legalmente constituídas. De súbito, algumas autoridades fiscais passaram a entender que essa prestação de serviço não poderia ser realizada por pessoas jurídicas, autuando-as e desconhecendo a inscrição concedida pela própria administração tributária e os tributos recolhidos.

Praticou-se verdadeira deslealdade institucional.
Fosse esse o entendimento do fisco, deveria estar configurado em ato declaratório interpretativo, para que prestadores de serviços intelectuais, de boa-fé, não elegessem essa via para exercício de suas atividades. O fisco, contudo, não poderia assumir tal tese, simplesmente porque falta amparo legal.

Inexiste lei que vede a prestação de serviços intelectuais por meio de pessoas jurídicas. Ao contrário, ela se encontra claramente respaldada pelo artigo 170, parágrafo único, da Constituição: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização dos órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”

O que poderia ter levado autoridades a praticar flagrantes atos de desconsideração de pessoas jurídicas sem que exista o mais remoto indício de simulação, fraude ou dolo? A única explicação seria uma equivocada interpretação do art. 116, parágrafo único, do Código Trbutário Nacional.

De fato, tal disposição admite a desconsideração pela autoridade administrativa de atos ou negócios jurídicos se realizados “com a finalidade de dissimular a ocorrência de fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária”. Sendo hipótese muito peculiar, o legislador, por cautela, condicionou a concretude dessa norma à observância de “procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.

Vê-se, pois, que se trata de norma de eficácia limitada, cuja eficácia plena resta dependente da aprovação de norma posterior. Artigos contidos na medida provisória nº 66/2002 buscavam estabelecer procedimentos que conferissem eficácia integral ao art. 116, par. único, do CTN. O Congresso, todavia, os rejeitou. Aquele dispositivo, portanto, não pode ser aplicado.

Ao perceber que havia uma zona cinzenta no entendimento dessas normas, o legislador introduziu, no projeto de conversão da chamada MP do Bem, disposição de natureza interpretativa que esclarece a matéria de forma inequívoca, ao estabelecer que, para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais por pessoas jurídicas, inclusive em caráter personalíssimo, está sujeita tão-só à legislação aplicável às pessoas jurídicas.

É uma quase redundância, justificável, todavia, em nome da clareza.
Emenda ao projeto de lei que cria a Super-Receita, aprovada por larga maioria nas duas Casas do Congresso, dá ainda mais ênfase à matéria ao vedar a desconsideração de pessoa, ato ou negócio jurídico pela autoridade administrativa para fins de reconhecimento de vínculo de trabalho, salvo se precedida de autorização judicial.

Tal proposição somente se explica pela necessidade de reforçar a segurança jurídica desses prestadores de serviços que pactuaram contratos, com respaldo legal, e pretendem persistir nessa atividade.

A aprovação da emenda, contudo, suscitou precipitados comentários que certamente serão incorporados à dramaturgia tributária. Falou-se de “empresa de uma pessoa só”, “restrições ao combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil” e outras superstições de mesmo jaez.

Realmente, existem firmas individuais, conforme previsto no art. 150 do regulamento do Imposto de Renda. Nenhuma delas no âmbito da prestação de serviços intelectuais. Algumas como verdadeira punição do fisco à prática habitual e informal de atos de comércio.

A resposta veio rápida. Não mais eram “empresas de uma pessoa só”, mas de “duas pessoas”. Malgrado a correção resultar em aumento de 100%, caberia indagar: a partir de que número de sócios seria uma boa empresa? Ou então: qual o fundamento legal dessa tese? Qualquer resposta gravita no domínio do risível.

Quanto à realização de trabalho escravo ou infantil por pessoa jurídica, somente poderia ingressar na categoria de fenômeno ainda não documentado na literatura especializada. Enfim, como todos sabem, pessoa jurídica é ficção jurídica.

Já temos suficientes problemas no sistema tributário brasileiro. Não podemos nos dar ao luxo de criar novos -especialmente quando podem ser qualificados como meras assombrações tributárias.

Autor:
Ives Gandra Da Silva Martins e Everardo Maciel

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
Advogado, professor emérito da Universidade Mackenzie, da UniFMU e da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.

EVERARDO MACIEL
Consultor tributário, ex-secretário da Receita Federal e ex-secretário da Fazenda de Pernambuco e do Distrito Federal.

Fonte: Netlegis

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