Ex-executivos demitidos disseram à Justiça do Trabalho que matriz sabia da ação de lobistas na Receita na gestão Everardo
LEONARDO SOUZA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Dois dos principais executivos do McDonald’s até meados de 2005, os ex-vice-presidentes no Brasil Eduardo Mortari e Jadir de Araújo disseram à Justiça que a matriz da rede de lanchonetes nos EUA sabia da contratação de lobistas para modificar regras tributárias no país em benefício da empresa, no caso conhecido como “venda de legislação” na Receita Federal.
Conforme a Folha publicou em junho de 2005, a rede planejou e obteve alteração na legislação para recolher menos Imposto de Renda.
Para alcançar o objetivo desejado, ela contratou indiretamente os serviços dos então auditores fiscais Sandro Martins e Paulo Baltazar, demitidos da Receita há duas semanas pelo ministro Guido Mantega (Fazenda) como resultado da investigação sobre a “venda de legislação”.
A empresa pagou R$ 4,45 milhões ao escritório de lobby de Brasília RPN, dos quais R$ 1,5 milhão à empresa dos dois auditores, a Martins Carneiro Consultoria, dias depois de a legislação ter sido alterada nos moldes pretendidos pelo McDonald’s. O ato administrativo com a mudança foi assinado pelo então secretário da Receita, Everardo Maciel, que nega ter agido para beneficiar a cadeia de restaurantes.
Quando a Folha publicou as primeiras reportagens sobre o envolvimento do McDonald’s no escândalo, a empresa negou que a matriz nos EUA tivesse conhecimento da contratação de lobistas ou de auditores da Receita. Pela versão da empresa, a contratação teria sido iniciativa isolada dos executivos no Brasil. Assim, Mortari e Marcel Fleischmann, ex-presidente no Brasil, foram demitidos por justa causa. Jadir teria sido forçado a pedir demissão. Mortari entrou com ação na Justiça do Trabalho contra o McDonald’s.
Por meio de sua assessoria, o McDonald’s informou que não iria comentar o assunto.
“Que a contratação da RPN não era segredo na reclamada [McDonald’s]; que o depoente conversou com o sr. Eduardo Sanches [então presidente do McDonald’s para a América Latina] sobre o assunto dedutibilidade de royalties tanto antes quanto após a contratação da RPN”, disse Jadir, como testemunha de Mortari, em depoimento ao Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo.
Foi Jadir, na condição de vice-presidente-executivo no Brasil, que assinou o contrato com a RPN. “Que o sr. Eduardo Sanches tinha acesso e sabia do contrato, dos valores envolvidos e do objeto da contratação […]. Que a reclamada possui auditoria interna e externa realizada pela Ernest Young, que reporta todas as verificações ao McDonald’s Corporation, afirmando que, caso houvesse firmado tal contrato sem autorização, o fato seria do conhecimento da matriz americana”, completou Jadir.
“Que o sr. Eduardo Sanches, no final do ano de 2000, através de uma conferência por telefone com o sr. Marcel Fleischmann […], autorizou a contratação da RPN para tratar especificamente do assunto dedutibilidade de royalties, afirmando o depoente que estava na sala do sr. Marcel nesta oportunidade”, disse Mortari no TRT.
O advogado de Mortari, José Augusto Rodrigues Júnior, afirmou que seu cliente tem provas de que a matriz sabia dos objetivos da contratação da RPN. Citou como exemplo troca de e-mails entre executivos da matriz tratando do tema.
Os R$ 4,45 milhões foram pagos pela cadeia de lanchonetes à RPN -cujo faturamento anual não passava de R$ 79 mil- em 8 de março de 2002, dez dias após a publicação, no “Diário Oficial” da União, do ato administrativo assinado por Everardo. Três dias depois, o R$ 1,5 milhão foi transferido para a consultoria dos auditores.
“Tenho a satisfação de comunicar uma excelente notícia que beneficiará a todos os franqueados: finalmente conseguimos uma posição da Receita Federal reconhecendo a dedutibilidade dos royalties […]. Esse reconhecimento veio através de “ato declaratório interpretativo” […] assinado pelo secretário da Receita Federal [Everardo Maciel]”, escreveu Jadir exatamente no dia 11 de junho em comunicado aos franqueados da rede no país.
Quando o ato foi assinado pelo ex-secretário da Receita, Sandro Martins exercia o cargo de seu assessor especial no fisco, responsável por elaborar pareceres que embasavam as decisões de Everardo. Nessa época, Paulo Baltazar estava aposentado.
Essa sempre foi a tática dos dois -um ficava na Receita, e o outro, fora, trabalhando na Martins Carneiro. No fisco, eram chamados pelos colegas de “anfíbios” (ora trabalhavam para a Receita, ora para a iniciativa privada contra o fisco).
Segundo documentos obtidos pela Folha em 2005, o objetivo do McDonald’s era permitir que os franqueados pudessem deduzir do Imposto de Renda até 5% dos valores pagos por royalty -daí Jadir e Mortari terem dito que ambos trataram com o então presidente do McDonald’s para a América Latina a contratação da RPN para resolver a questão da “dedutibilidade de royalties”.
Até então, o entendimento na Receita era que a dedução não poderia passar de 1%. Aqueles que deduziam valores acima desse percentual eram autuados pelo fisco. O ato assinado por Everardo passou a ser usado pelos franqueados para contestar as autuações.
outro lado
Rede não fala; Everardo nega irregularidade
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
A matriz do McDonald”s nos Estados Unidos, por meio de sua assessoria no Brasil, informou que não iria comentar as declarações dos ex-executivos da empresa à Justiça do Trabalho.
“Em respeito à relação de confiança que mantém com seu quadro de profissionais, a companhia não se pronuncia sobre assuntos ligados a seus funcionários e ex-funcionários e considera inapropriado comentar sobre assuntos que estejam sendo discutidos na esfera judicial.”
A empresa ressaltou, contudo, que tem colaborado com as investigações das autoridades brasileiras.
Everardo
O ex-secretário da Receita Everardo Maciel afirmou que todos os atos administrativos por ele assinados, incluindo o que trata da dedução de royalties, foram completamente legais.
No caso do Ato Declaratório Interpretativo 2/2002, que foi comemorado pelo então vice-presidente-executivo do McDonald”s, Jadir de Araújo, o ex-secretário disse que não houve nenhuma mudança na legislação. Portanto, acrescentou ele, não beneficiou nem a empresa nem seus franqueados.
“O ato foi apenas para ratificar portaria do ministro da Fazenda, que estabelecia os limites de dedução de royalties”, disse.
Everardo citou nota do presidente da ABF (Associação Brasileira de Franchising), Antônio Acioli, na qual ele diz que o ato não beneficiou os franqueados.
O ex-secretário não quis comentar a demissão dos ex-auditores Sandro Martins e Paulo Baltazar, alegando não ter tomado conhecimento dos fundamentos que basearam a decisão do ministro Guido Mantega (Fazenda).
Com relação às duas ações nas quais o Ministério Público o acusou de improbidade administrativa, ele disse que em uma (caso Fiat) ganhou em primeira e segunda instâncias. Na outra, ele disse ter obtido nulidade da ação e que o caso começou do zero, já tendo o Superior Tribunal de Justiça entendido inicialmente que está prescrito, faltando, contudo, uma sentença nesse sentido.
A Receita Federal, por meio de sua assessoria, informou que “a apuração de eventual desvio de conduta, respeitado o devido processo legal, demonstra o zelo que a Secretaria da Receita Federal do Brasil tem com a coisa pública”.
Questionada pela Folha, a assessoria destacou que a demissão dos dois auditores não fere a imagem do órgão nem constrange o secretário Jorge Rachid, pois “é reflexo de um trabalho atuante e independente realizado pela área de correição da Secretaria da Receita Federal do Brasil”.
A Folha não conseguiu localizar Sandro Martins e Paulo Baltazar.
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Nove empresas deram R$ 26 mi a ex-auditores
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Os ex-auditores da Receita Federal Sandro Martins Silva e Paulo Baltazar Carneiro, sócios da Martins Carneiro Consultoria, receberam ao menos R$ 26 milhões de nove empresas, segundo investigação iniciada por comissão de inquérito aberta pela Corregedoria da Receita em 2003, na gestão do ex-corregedor Moacir Leão, que embasou 12 ações do Ministério Público Federal, por improbidade administrativa, contra Sandro e Paulo.
As ações ainda estão em curso, mas a Justiça chegou a decretar, liminarmente, bloqueio parcial de bens dos dois. Os investigadores reuniram provas de que ao menos três clientes da dupla obtiveram mudanças na legislação em seu favor: o McDonald’s, a Fiat Automóveis e a importadora Eximbiz. As alterações foram confirmadas na gestão do então secretário da Receita, Everardo Maciel. A Martins Carneiro recebeu dessas empresas, respectivamente, R$ 1,5 milhão, R$ 2,18 milhões e R$ 1,33 milhão.
As três empresas foram acusadas nas ações contra os ex-auditores de terem sido beneficiadas pela suposta “venda de legislação”. Everardo foi acusado de improbidade nos casos Fiat e McDonald’s. Não houve até hoje nenhum processo transitado em julgado.
O maior caso da dupla, no entanto, foi o da construtora OAS, cujo contrato lhes rendeu R$ 18,35 milhões. O atual secretário da Receita, Jorge Rachid, é réu no processo envolvendo o caso OAS, acusado pelo Ministério Público de obstruir as investigações da Corregedoria da Receita.
Rachid é um dos principais suspeitos, ainda quando auditor, de ter feito deliberadamente um auto de infração falho contra a OAS, em 1994. O objetivo seria facilitar a derrubada do auto, o que beneficiaria Sandro e Paulo, contratados da construtora. Dois dos três integrantes da comissão de inquérito que apurava o caso foram afastados no meio da investigação.
Há ainda um processo administrativo contra Rachid, também no caso OAS, parado na Procuradoria Geral da Fazenda Nacional desde meados de 2006 e que prescreve em agosto.
Paulo e Sandro receberam também R$ 1,27 milhão da coletora de lixo Vega Engenharia (prestadora de serviços da Prefeitura de São Paulo e uma das principais doadoras dos diretórios estadual e nacional do PT) e R$ 950 mil da Brasil Telecom e do banco Opportunity, que administrava a telefônica. A empreiteira Norcon (R$ 410 mil) e a Refrigerantes Brasília (R$ 40 mil) também contrataram os serviços dos dois auditores.
Todas as empresas tinham algum problema com a Receita ou autuações que queriam derrubar na esfera administrativa ou por meio de mudanças na legislação tributária. Juntas, as nove empresas tinham autuações da Receita no total de R$ 1,81 bilhão.
Fonte: Folha de São Paulo